COM A PALAVRA O MAESTRO ISAAC KARABTCHEVSKY
“PORTO ALEGRE É UMA CIDADE QUE NÃO QUERIA UM TEATRO”
Completou 82 anos em dezembro, o maestro Isaac Karabtchevsky não pensa em aposentadoria. Nem em breve nem em qualquer outro momento:
- Para nós, músicos, esse preceito da aposentadoria não se aplica.
O regente paulista tem uma trajetória bem-sucedida no Exterior: desde o final dos anos 1980, trabalhou com a Tonkünstler-Orchester, em Viena (1988-1994), no Teatro La Fenice, em Veneza (1995-2001), e na Orchestre National des Pays de la Loire, na França (2004-2010). Hoje, ocupa os cargos de diretor artístico e regente titular da Orquestra Petrobras Sinfônica, no Rio de Janeiro, e da Orquestra Sinfônica Heliópolis, projeto mantido pelo Instituto Baccarelli em uma comunidade de São Paulo.
Karabtchevsky é um nome familiar dos gaúchos por ter sido diretor artístico e regente titular da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) de 2003 a 2010. Deixou o posto devido, principalmente, à frustração com a demora na construção da Sala Sinfônica da Ospa. Esses sete anos foram marcados por protestos de moradores e ambientalistas contra a instalação do teatro em uma área anexa ao Shopping Total e, depois, no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho. A obra começou, no parque, dois anos depois da saída do regente, mas está parada, sem previsão de conclusão.
O maestro recebeu ZH após ensaio com a Orquestra Jovem do Rio Grande do Sul, projeto de formação musical de jovens de baixa renda da rede pública de ensino conduzido pelo regente Telmo Jaconi.
O senhor está há seis anos afastado de Porto Alegre, desde que deixou a direção artística da Ospa. Mudou sua visão sobre a cidade?
Sempre fui muito bem recebido. Fiz grandes amigos e continuo com grandes amigos em Porto Alegre. Uma das coisas mais negativas que carrego daqui é sobre o projeto da construção do teatro da Ospa, que remonta aos meus primeiros anos em Porto Alegre (a partir de 2003). O Ivo (Nesralla, presidente da Fundação Ospa) e eu saímos a campo para estabelecer a construção do Teatro da Ospa. Foi um terreno acoplado ao Shopping Total. De repente, começou um a onda de reclamações dos habitantes da cidade, dizendo que a construção do teatro ia impedir que eles usufruíssem da vista maravilhosa que tinham daqueles prédios. Então, começou uma campanha (contra a construção), e o projeto foi abortado. Essa foi a segunda vez que um projeto tinha sido abortado. Teve uma vez anterior à minha vinda. É uma cidade que não queria um teatro. Foi uma coisa que me frustrou enormemente. Nunca vi algo parecido. Espero que um dia acordem para a necessidade de uma cidade da grandeza de Porto Alegre ter um teatro à altura de sua tradição.
Depois, depois o projeto foi levado ao Parque Maurício Sirotsky Sobrinho, onde também houve protestos. Na ocasião, em 2007, o senhor declarou a ZH: “Uma atitude provinciana de uma minoria que grita mais alto não pode prejudicar o interesse de toda uma cidade”.
Repito exatamente as mesmas palavras. É uma visão provinciana, incompatível com a grandeza de Porto Alegre. Acho que aí cabe à autoridade, ao governador ou ao prefeito... Eles têm que se unir e dizer: “Não é uma minoria que vai excluir da cidade a possibilidade de ter um teatro que faça jus às suas tradições”.
A Sala Sinfônica começou a ser construída no parque, as fundações foram feitas, mas a obra está parada por questões burocráticas, pelo que se sabe.
Olha, foi uma das razões pelas quais eu saí daqui. Não só essa, como também a falta da reformulação da vida didática da Ospa. A Ospa precisava estar diretamente ligada a esse movimento que está sendo construído pelo Telmo (Jaconi, maestro) hoje com a Orquestra Jovem do RS. A Ospa teria todas as condições de fazer esse trabalho. Nunca fez. Fez uma Orquestra Jovem, nem sei se existe (segundo a assessoria da Ospa, a Ospa Jovem realiza concertos regulares). Mas, enfim, nunca foi uma preocupação fundamental. Foi uma série de fatos sobrepostos que me fez tomar a decisão de sair. Infelizmente, porque tive momentos de muita satisfação musical.
Deve ter sido uma decisão difícil.
Foi difícil, mas... Sempre digo a mesma coisa para os alunos do curso que organizo há 16 anos em Riva del Garda, na Itália: “Vocês têm que se acostumar há um período de permanência e um período de saída”. O maestro sente isso: quando está na hora de ficar e quando está na hora de sair.
Alguns músicos da Ospa lamentavam que o senhor passasse pouco tempo em Porto Alegre. Como o senhor responde a essa crítica?
Meu contrato foi determinado pelas disponibilidades que tinha na época. Um maestro que se limita a uma cidade é, por fora das circunstâncias, limitado a uma visão parcial da profissão. É necessário circular, estar atento às tendências e à evolução do mercado de trabalho. Foi assim aos 26 anos em que fui diretor artístico da Orquestra Sinfônica Brasileira, cargo que dividia, em diferentes épocas, com a direção artística da Tonkünstler-Orchester, em Viena, do Teatro La Fenice, em Veneza, e da Orchestre National de Pays de la Loire, na França. O mesmo princípio se aplica a todos os maestros de carreira internacional, em todas as partes do mundo.
O que faz da Osesp e da Filarmônica de Minas Gerais orquestras de excelência?
A Osesp está em um ponto em que nenhuma das orquestras brasileiras está. Você pode citar (a Filarmônica de) Minas Gerais, a Petrobras Sinfônica, a Sinfônica Brasileira. Pode citar várias outras orquestras, mas nenhuma delas chega no ponto da Osesp porque ela sempre investiu no princípio da qualidade. Tiveram patrocinadores. Tiveram, primeiro com (Mário) Covas (governador de São Paulo de 1995 a 2001), com o PSDB no poder, uma unidade de comando, que foi certamente providencial para a unidade artística da orquestra. Então, em faltando apoio político, cabe às orquestras construírem ao redor de si um manto de qualidade que as proteja. Aí elas não serão assoberbadas por mudanças políticas naturais que podem interromper a fluidez de um trabalho bem feito. Acho que, no momento em que você constrói algo bom, a própria comunidade se dá conta de que aquilo é intocável. É o caso de vários balés: O Grupo Corpo, a (Cia.de Dança) Deborah Colker. Tem entidades que são intocáveis porque realizam um trabalho de ponta. Acho que é isso que falta à Ospa: um trabalho de ponta.
Existe um estereótipo de que os maestros são pessoas muito rigorosas, por vezes ríspidas com os músicos. O quanto existe de verdade nisso?
Em geral, quando se fala em rigor, é um rigor que os verdadeiros maestros exigem de si mesmos. Quando falo em rigor exigido de si mesmo é porque eu me vejo refletido nisso. A minha vida toda foi uma devoção total, uma cobrança interna no sentido de que eu deveria fazer aquilo e deveria transmitir aquilo que eu estava sentindo. Sem devaneios e sem outras preocupações que não fossem aquelas de transmitir com seriedade e convicção os meus pensamentos musicais. Estou falando isso de um jovem antes de ir para a Alemanha estudar, de alguém que formulou o princípio de comunicação entre gesto e orquestra não com o uma coisa visualmente interessante para o público, mas como de importância para a relação íntima entre o maestro e uma orquestra. O gesto serve a uma função específica: aquela de definir e transmitir o conteúdo e o sentimento musical. Um gesto que fuja a essa relação, a essa dualidade, é um gesto em vão, é um gesto desprovido de qualquer outra função. O gesto tem que ser a medida exata do essencial, daquilo que seja importante para a realização musical. Daí provém essa mística do rigor. Mas se o maestro for rigoroso consigo mesmo, vai ser rigoroso com os outros, porque o rigor é uma coisa imanente. Se você se cobra, você exerce a função de cobrar do grupo que está a sua frente. Daí provém talvez a mística que você apontou. Tudo aquilo que escapa a essa relação é fictício, é superficial.
Até porque o maestro precisa impor respeito frente aos músicos da orquestra.
Exatamente. E os músicos com sexto sentido – estou falando dos bons músicos – se apercebem imediatamente da figura que está à sua frente.
Um maestro ruim é facilmente desmascarado pelos músicos?
No primeiro minuto de ensaio. Há aqueles músicos que se contentam com maus maestros. Porque com os maus maestros eles têm campo livre para exercer suas atividades. Mas, em uma orquestra séria, os músicos têm essa responsabilidade na visão do maestro como alguém que os comanda de uma forma superior, com a qual eles possam transmitir música e fazer música em conjunto. Quando essa relação é interrompida por uma série de outros problemas, então a orquestra passa a ser um aparelho totalmente secundário.
O senhor trabalha com a Sinfônica Heliópolis e regeu a Orquestra Jovem do RS. Pensando nesses trabalhos sociais com jovens, o senhor diria que a música salva?
Considero da maior importância esse trabalho de inclusão social. Eu me reporto à experiência que tive com meu grande amigo José (Antonio) Abreu em Caracas, quando ele começou esse movimento há mais de 40 anos (com o projeto de inclusão social pela música conhecido como El Sistema). Eu via com entusiasmo tudo aquilo. Visitava as favelas de lá, que têm a mesma configuração das nossas. O Abreu sempre falava para mim: “Não é necessário prospectar. Os talentos estão aí à espera de um projeto”. Foi com essa convicção que, após vários anos na Europa, tive o desejo de implementar no Brasil essa experiência vivenciada na Venezuela. Sempre achei que o povo brasileiro é um dos mais musicais do mundo. Tem uma sensibilidade, uma natureza musical, pelas várias origens e influências culturais. Nós herdamos um passado de música colonial portuguesa, herdamos uma tradição europeia e aliamos isso a ritmos provenientes da África, os ritmos indígenas que Villa-Lobos tão bem resumiu em sua obra. Enquanto o Abreu está há mais de 40 anos nisso, estamos recém começando. Encontrei Heliópolis e estou encontrando a Orquestra Jovem do RS com atalhos que me fazem prosseguir em relação a essa linha. Considero isso um presente para minha maturidade.
Em países com violência muito presente, como Venezuela e Brasil, parece que esses projetos são uma tábua de salvação, pois o sistema social, político e econômico não é inclusivo.
O Abreu sempre me disse: “Quando nos dispusemos a estruturar esse trabalho, não demos uma conotação exclusivamente musical.”. El Sistema é com siderado pelo governo venezuelano como um trabalho social. Secundariamente vem a parte musical, que se transformou na principal. Mas a base, a proveniência, a matéria orgânica é a inclusão social.
Esse trabalho social pode revelar talentos de ponta no cenário internacional?
Justamente. (Gustavo) Dudamel (diretor musical da Filarmônica de Los Angeles e da Orquestra Sinfônica Simón Bolívar) foi descoberto assim. De repente aparece um talento fantástico. O (maestro indiano) Zubin Mehta, um dos principais entusiastas ligados diretamente a Heliópolis, já levou dois músicos para a Filarmônica de Israel. Claudio Abbado (maestro italiano morto em 2014), quando esteve em Caracas, levou outros tantos. Isso é fundamental. Na América Latina, projetos similares a El Sistema são um exemplo ao mundo da nossa capacidade de galvanizar jovens talentos e incluí-los em uma perspectiva musical sólida. Dar-lhes um senso de identidade que eles não tinham antes. Veja você esse espaço em que estamos (Fundação O Pão dos Pobres), faça uma visita como eu fiz. Alguns desses jovens eram até pouco tempo atrás desprovidos de identidade. Alguns deles estão na Orquestra (Jovem do RS), tocando muito bem. O que me dá satisfação é que o talento está aí.
Apesar dos projetos sociais, dos concertos didáticos, ainda sobrevive um lugar-comum de que é música para público restrito? Por quê?
Isso é uma coisa bem latino-americana. Nos 23 anos que passei na Europa, nunca tive problemas. Enchia salas com gente jovem. Viena foi o maior exemplo. Foi meu primeiro posto de importância lá fora, regendo no Musikverein, uma das salas mais importantes da Europa. Via filas e filas de jovens. Por uma simples razão: o ensino de música é acoplado ao ensino curricular. Então, tocar um instrumento ou cantar em coral, para eles, é uma experiência cotidiana. Ainda que não sejam músicos, são pessoas que têm sensibilidade voltada para isso. Na França, é a mesma coisa. Na Itália, nem se fala. É uma realidade bem diferente da nossa. Aqui, temos entraves de natureza, eu diria, psicológica ou mercadológica. Aqui, a forma de comunicação pela grande mídia é feita em função da música popular, como se fossem duas partes completamente conflitantes (a música popular e a música clássica). Na realidade, tudo nasce de uma mesma fonte, a fonte universal da música, com várias vertentes: música caipira, música popular, bossa nova, jazz. Elas se acoplam. De certa maneira não há esse preconceito. Você não pode ouvir Stravinsky sem ouvir jazz, porque eles se acoplam. Um rouba do outro. Só que o público permanece, por razões sociais, eu diria culturais, com esse distanciamento entre estilos, como se fossem antagônicos.
Como o senhor vê a crise política e econômica instalada no Brasil?
O que vivenciei nos meus 82 anos de vida é que o Brasil oi sempre isso. É uma democracia muito tênue ainda, muito jovem. Passou de um regime republicano para uma ditadura militar e da ditadura saiu para isso que está aí hoje. Espero que, enquanto eu ainda viva, consiga visualizar uma coisa melhor.
Nos últimos tempos, uma parcela barulhenta da população tem criticado o financiamento público à cultura, uma certa demonização da Lei Rouanet. Como o senhor vê esse cenário?
É uma coisa muito mais complexa. As pessoas que têm uma visão deformada sobre a importância da cultura jamais leram Shakespeare. Shakespeare fala que um ser humano destituído de música é quase um animal, se não tem a sensibilidade de se emocionar com a música (em O Mercador de Veneza, Lorenzo diz que a música pode mudar o temperamento dos animais, e o homem que não tem a música em si não é digno de confiança). É um pouco exagerado, mas de qualquer maneira denota que as artes vêm, desde tempos imemoriais, acopladas a toda a manifestação do ser humano. Estou falando até dos povos primitivos. As cerimônias religiosas deles eram diretamente ligadas à música. A música é ligada à própria existência do ser humano. Já a Lei Rouanet proporciona, de uma forma coerente, que alguns organismos culturais sejam ajudados pela sociedade ou pelas indústrias ou pelo governo. Ela sofreu algumas deformações por insistir no polo Sudeste. Não queria localizar isso geograficamente, mas algumas cidades e artistas foram mais privilegiados que outros. Então, ela merece, sim, uma reanálise. Diria que a Lei Rouanet é ótima, fundamental, mas precisa sofrer alguns ajustes, como tudo. Alguns ajustes que pudessem beneficiar um maior número de artistas e contemplar outras cidades que não esse eixo (Sudeste).
Como o senhor avalia as políticas públicas para a cultura no Brasil?
É uma pergunta que esbarra sempre nos políticos que estão à frente de cargos públicos. Tivemos nos últimos tempos algumas experiências lamentáveis dos nossos representantes na Câmara dos Deputados. Esse estrato cultural não chegou à maioria deles. Depende muito de quem está no poder. Feliz ou infelizmente, essa é a situação. Temos que ter governantes que, ao tocar em funções essenciais, funções de comando político, tenham também consciência do espectro cultural do país.
Como foram os efeitos da crise da Petrobras sobre a Orquestra Petrobras Sinfônica?
Pensei que fosse afetar, fiquei muito preocupado. Mas, em recentes reuniões, a posição especialmente desse novo presidente, o (Pedro) Parente, é absolutamente consciente do valor que tem a orquestra sob o ponto de vista da projeção, da visibilidade da empresa.
As políticas culturais no Brasil parecem sofrer os males das demais políticas no que diz respeito à falta de continuidade. Parecem não estar blindadas à transição entre governos.
Lamentavelmente é assim. Não temos ainda organismos culturais blindados contra essa flutuação. Não ser dependente é ter organismos culturais que se mantenham pela sua tradição e qualidade. Estou falando em orquestras sinfônicas, mas você pode transportar para o campo teatral, o balé. É fundamental que o princípio da qualidade esteja presente. Sem a qualidade, essa flutuação vai ser permanente. Um governador eleito, ao saber que tem à frente instituições que dão prestígio, vai ter o maior cuidado ao estabelecer sua política financeira em relação a elas.
Quando o senhor projeta sua trajetória daqui para a frente, o que falta fazer? Ou o senhor já se sente realizado?
Para nós, músicos, esse preceito da aposentadoria não se aplica. Estou com 82 anos (completou em 27 de dezembro), e a aposentadoria, para mim, é uma coisa totalmente irrelevante. Eu creio, e estou absolutamente convencido disso, que um músico tem que trabalhar até o último instante, até o último momento. É nessa vivência com a realidade musical que ele começa a redescobrir partituras que já regeu há tantos anos ou que já tocou há tanto tempo e vivenciá-las de maneira completamente diferente, como se fosse a primeira vez. Esse fascínio que eu tenho pela redescoberta, ainda que seja de obras antigas, é o que me faz querer trabalhar até a morte.
Fonte: Zero Hora/Fábio Prikladnicki (fabio.pri@zerohora.com.br) em 11/09/2016.