AS RAÍZES DO BRASIL EM DISCO
INDÚSTRIA FONOGRÁFICA
Surgida há 50 anos, Discos Marcus Pereira lançou de Cartola a Paulo Vanzolini, mas hoje seu acervo esbarra em desinteresse comercial.
No centro de São Paulo, há 50 anos, o Bar Jogral era palco de animadas apresentações de música popular brasileira e também de discussões sobre o futuro da música e do país. Chico Buarque, Jorge Ben, Alaíde Costa, Luiz Gonzada (1912-1989), Martinho da Vila, Adoniram Barbosa (1910-1982) e Lupicínio Rodrigues (1914-1974) circulavam e se apresentavam no pequeno palco do bar, localizado na Galeria Metrópole. Nas mesas, o dono do bar, o compositor Luiz Carlos Paraná (1932-1970) e os publicitários Marcus Pereira (1930-1981) e Aluízio Falcão debatiam os efeitos da invasão do iê-iê-iê que, com suas guitarras, estariam destruindo a música tradicional brasileira.
Para prestigiar a verdadeira música brasileira, Pereira sugeriu a gravação de um disco de um dos frequentadores do Jogral para ser distribuído como brinde de Natal de um cliente de sua agência de publicidade. O frequentador era Paulo Vanzolini (1924-2013), que, embora fosse reconhecido como compositor, era inédito em disco. O brinde, ONZE SAMBAS E UMA CAPOEIRA, com a participação de Chico Buarque, foi aclamado pela crítica e suas 1,5 mil cópias foram disputadíssimas naquele Natal de 1967. O sucesso da empreitada levou Pereira a abrir uma gravadora para registrar aquela música brasileira que, acreditava, corria perigo de desaparecer ou ser afetada por externalidades.
A gravadora, que só seria oficialmente aberta em 1974, levou o nome de seu fundador, e a Discos Marcus Pereira primou por registros de gêneros e cenas musicais consideradas constituintes da cultura brasileira. Em sua breve existência, realizou o mapeamento da música brasileira por meio de vários projetos que registraram o cancioneiro folclórico e as manifestações culturais das regiões do país. Embora tenha atuado por pouco tempo, entre 1967 e 1981, a Discos Marcus Pereira teve grande influência no surgimento das gravadoras independentes ao longo das décadas seguintes, como Eldorado, Kuarup e Biscoito Fino. Porém, 50 anos depois, esse acervo é pouco explorado e conhecido.
A maior realização da Discos Marcus Pereira foi capturar cenas e artistas que, sem apelo popular, não seriam registradas pelas grandes gravadoras em atividade naquele momento. Um bom exemplo é o caso de Cartola (1908-1980), que aos 65 anos conseguiu lançar seu primeiro LP na Discos Marcus Pereira em 1974 depois de outras gravadoras terem se recusado a gravá-lo. O produtor João Carlos Botezelli, o Pelão, conta como as gravadoras dispensavam Cartola quando ele sugeria a gravação de um disco com o sambista. “Aqui não é asilo”, era a resposta, segundo Pelão, de seus apelos às grandes gravadoras como Philips e Odeon.
O foco da Discos Marcus Pereira era, contudo, a produção de discos culturais, com um conceito específico, como a coleção que ficou conhecida como Mapa Musical do Brasil, com séries dedicadas a cada região geográfica brasileira. O objetivo era captar manifestações culturais locais, nos mesmos moldes do executado por Mário de Andrade (1893-1945) durante os anos 20 e 30, antes que fatores externos pudessem modificar ou destruir essas cenas.
“Todo o projeto, com sofisticados recursos técnicos, dava sequência ao que Mário de Andrade, munido apenas de lápis e papel, iniciara 40 anos antes” afirma Aluízio Falcão, parceiro de Pereira na agência e na gravadora. Um dos pilares da gravadora, Falcão havia trabalhado no Movimento de Cultura Popular (MCP) no Recife, no início da década de 60, do governo de Miguel Arraes (1916-2005). Com o golpe de 64, Falcão tornou-se perseguido político e recebeu proteção e emprego de Pereira, em São Paulo. O trabalho de Falcão no MCP era fazer o mapeamento das manifestações musicais coletando esses registros para aplicá-los na educação em unidades escolares.
As coleções de quatro Lps para cada região intercalavam faixas gravadas ao vivo por cantores e grupos folclóricos e outras, refeitas em estúdio e interpretadas por artistas profissionais conhecidos do grande público. A ideia era aproximar o canto folclórico do público urbano, por isso as intervenções de estúdio. Intelectuais como Ariano Suassuna (1927-2014) e Hermilo Borba Filho (1917-1976) foram chamados para escrever os textos dos encartes da primeira coleção, sobre o Nordeste. A coleção – dedicada a Mário de Andrade – ganhou os prêmios Estácio de Sá, do Museu da Imagem e do Som carioca, e o Noel Rosa, da Associação dos Críticos da Imprensa de São Paulo. Foi um sucesso de vendas, o que levou Pereira e Falcão a pensar que havia um mercado para discos culturais, focados em um conceito, e não em artistas ou músicas de sucesso.
Ao projeto da “Música Popular do Nordeste”, seguiram-se a “Música Popular do Centro-Oeste/Sudeste”, “Música Popular do Sul” e “Música Popular do Norte”. Nesses projetos, uma equipe visitava as regiões e gravava os cantos folclóricos e as canções tradicionais do povo do lugar. Nas equipes estavam nomes como Quinteto Violado, Théo de Barros, Radamés Gnattali (1906-1988), Rogério Duprat (1932-2006), Fernando Brant (1946-2015) e Pena Schmidt.
Em várias ocasiões, essas equipes enfrentaram os mesmos obstáculos registrados pela Missão de Pesquisas Folclóricas de Mário de Andrade. Carolina Andrade, diretora artística da gravadora entre 1975 e 1977 e mulher de Pereira na época, conta que, na pesquisa para a “Música Popular do Sul”, ao tentar gravar o canto das rendeiras, eles encontraram um problema. No passado, as rendeiras se reuniam todas as noites para cantar e tecer. Mas elas haviam trocado a cantoria pelas telenovelas e não se lembravam mais das canções.
O sucesso de crítica não impediu, no entanto, que a gravadora estivesse sempre endividada. Pereira até conseguiu um financiamento público da Finep para turbinar a empresa, mas ela voltava para o vermelho depois de alguns meses. Os custos da gravadora eram muito grandes porque eles não tinham estúdio, prensagem ou distribuidora próprias, e pagavam por esses serviços, ficando em desvantagem em relação às demais empresas que possuíam todos os meios de produção.
Além disso, enquanto o mercado fonográfico apostava no crescimento de vendas a partir de um público jovem que comprava discos, a Marcus Pereira focava em u público adulto, que não era o grande público consumidor. Os discos culturais da gravadora também não possuíam sucessos que alavancassem vendas rápidas, provocando um descasamento entre custos e receita. O disco de maior sucesso comercial foi ARTHUR MOREIRA LIMA INTERPRETA ERNESTO NAZARETH, com cerca de 120 mil cópias vendidas, seguido pelo primeiro disco de Cartola e da coleção MÚSICA POPULAR DO NORDESTE.
Um acordo de distribuição fechado com a gravadora Copacabana aumentou ainda mais as dívidas e, quando Pereira morreu em 1981, o acervo da gravadora acabou sendo absorvido pela Copacabana para saldá-las. Esse acervo, que inclui 144 discos com registros de artistas como Moreira Lima, Banda de Pífanos de Caruaru, Canhoto da Paraíba, cartola, Chico Buarque, Clementina de Jesus (1901-1987), Dona Ivone Lara, Donga (1889-1974), Elba Ramalho, Elis Regina (1945-1982), Elomar, Monarco, Nara leão (1942-1989), Paulo Vanzolini e Quinteto Armorial encontra-se hoje nos arquivos da Universal que não tem planos de relançamento.
O acervo da Discos Marcus Pereira está, em grande parte, fora do catálogo há mais de 30 anos, com poucos títulos sendo relançados em CD. Já o acervo gravado por Mário de Andrade encontra-se preservado pelo Instituto de Estudos Brasileiros e pela Discoteca Oneyda Alvarenga. Já na década de 30, Mário comparou os discos a sambaquis, que preservariam as canções populares. Pereira e seus produtores acreditavam que os registros em disco também teriam esse papel de preservação da memória musical do povo. Os dois lutaram contra um destino aparentemente imutável, de que tudo se perderia e precisava ser registrado, o que, de certa forma, contribuiu para que seus projetos de registros folclóricos fossem realizados. A preservação dessa memória dependerá, contudo, da manutenção de seus acervos.
MÁRIO DE ANDRADE REGISTROU CULTURA AMEAÇADA
Abancado à escrivaninha em sua casa na rua Lopes Chaves, em São Paulo, Mário de Andrade não fazia só poesia. Pesquisador incessante da cultura brasileira, Mário também foi músico, escritor, folclorista e um dos principais articuladores do Movimento Modernista de 1922. Foi ainda o iniciador da musicologia nacional e buscou um entendimento das relações estabelecidas entre cultura letrada e cultura popular, entre música popular e erudita.
Por meio de livros e artigos, procurava contribuir para a nacionalização artística do Brasil. Acreditava que a música, para ser de fato brasileira, precisava incorporar elementos presentes no inconsciente do povo, no folclore. “O compositor brasileiro tem que se basear quer como documentação quer como inspiração no folclore”, escrevia ele em ENSAIO SOBRE A MÚSICA BRASILEIRA, que completa 90 anos em 2018. As ideias do livro serviram de base para a criação da Discos Marcus Pereira.
Mário acreditava que a verdadeira música brasileira iria surgir de uma amálgama formada pelos vários elementos folclóricos presentes regionalmente no Brasil. E que esses elementos deveriam ser documentados para posterior estudo antes que desaparecessem. Ele sabia, através de leituras de revistas estrangeiras, que no Leste Europeu, por exemplo, a coleta de cantos e danças folclóricas era enfatizada porque estavam sumindo. “E estavam sumindo porque a mecanização da vida do campo faz com que deixem de ser cantados. Essas danças coletivas que dependiam da vida que o homem levava no campo estavam desaparecendo. À medida que se substitui a força braçal por outras formas de plantio e de coleta, eles deixavam de ser usados”, afirma Flávia Camargo Toni, professora da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros, com foco no pensamento musical do modernista.
Mário realizou, então, operações de coleta de músicas folclóricas nos Estados do Norte e Nordeste brasileiros visando estudar seu caráter poético e documentar essa cultura que estaria ameaçada. Ele acreditava que, além das mudanças das relações de trabalho, o avanço do rádio e do cinema, trazendo novas referências culturais, poderiam afetar e contaminar o folclore. Em viagens exploratórias, realizadas entre 1927 e 1929, Mário visitou a Amazônia e o Nordeste anotando de próprio punho partituras de melodias e canções folclóricas. Dez anos depois, já à frente do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo, criou a Missão de Pesquisas Folclóricas. Munido de gravadores, quatro pesquisadores voltaram ao Norte e Nordeste para registrar essa música regional e folclórica em discos de cera de carnaúba. O resultado foi a documentação de 34 horas de música, gravadas em quatro diferentes Estados, que serviu como base para a primeira coleção de registros sonoros do país. Hoje, essas gravações estão no Centro Cultural São Paulo.
As gravações feitas pela missão confirmaram os temores de Mário. No Recife, os pesquisadores penaram para conseguir registrar o canto dos carregadores de piano, profissionais que realizavam a mudança de pianos de um local para outro, ao som de uma canção ritmada que os ajudavam a marcar o passo. Costume comum até cerca de 1930, os carregadores foram substituídos por caminhões americanos e o canto caiu em desuso.
Quando a missão chegou ao Recife, em 1938, antigos carregadores foram contatados e o Teatro Santa Isabel foi alugado para que as cantigas fossem registradas. Mas ninguém conseguiu recordar as canções. Um piano precisou ser alugado para que fosse carregado nas costas pelos homens. Carregar o piano foi necessário não apenas para que os homens recordasse letra e música como também para acertar o ritmo da cantiga, onde cada palavra tinha a função de marcar um passo. Sem o piano nas costas, nem a letra nem a coreografia foram lembradas.
Para Flávia Toni, a história dos carregadores é exemplo de como o pensamento de Mário de Andrade era arrojado. “Ele já tinha entendido que estas melodias populares eram alimentadas pelas práticas sociais. À medida que você não precisa mais carregar o piano na cabeça, não havia mais necessidade de se reunir um grupo de homens para cantarem e marcarem o passo. Mário sabia que algumas coisas iriam desaparecer e que, de alguma forma, elas precisavam se materializar para que não fossem perdidas. É a base da ideia do que se entende por constituição de um patrimônio cultural.”
PAULO DUARTE, UM ARTICULADOR CULTURAL
Existe um elo importante entre Mário de Andrade e Marcus Pereira: paulo Duarte (1899-1984), intelectual e político nas décadas de 20 e 30. Duarte foi chefe do gabinete da Prefeitura de São Paulo na década de 30 e foi ele quem indicou seu amigo Mário de Andrade para a direção do então recém-criado Departamento de Cultura de São Paulo, em 1935. O projeto do departamento nasceu em reuniões entre Duarte e Mário, que defendiam a construção de um patrimônio cultural para o Brasil a partir do projeto modernista. Duarte também era primo-irmão de Marcus Pereira e conselheiro do publicitário.
Em diferentes épocas, Duarte foi próximo e influenciou o pensamento tanto de Mário como Pereira. Dos dois foi confidente e a ambos sobreviveu. O pensamento musical de Mário chegou até Pereira através de Duarte, que era antropólogo e defensor do folclore brasileiro. Foi Duarte que, no Congresso, conseguiu, em 1938, os recursos necessários para montar a Missão de Pesquisas Folclóricas.
Duarte foi também o fundador da REVISTA ANHEMBI, publicação de ideias da elite paulistana dos anos 50 e meados de 60. A revista abordava temas como literatura, cultura, sociologia e política. Os artigos situavam-se a meio caminho entre os campos político e cultural, além de servir para o debate acadêmico de ciências sociais. Florestan Fernandes (1920-1995), Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni (1926-2004) estão entre os colaboradores da revista, que circulou entre 1950 e 1962. Foi nela onde os primeiros resultados da pesquisa pela Unesco e elaborados por Roger Bastide (1898-1974) e Fernandes foram publicados.
Fonte: revista Valor/Eduardo Magossi/SP em 22/12/2017.