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Análise da História Musical do Brasil no Ano 1967
Análise da História Musical do Brasil no Ano 1967

MITOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS

 

TOQUE-ME OU TE DEVORO!

 

Músico analisa o ano de 1967 na história musical do país e o medo do novo, como uma esfinge à espreita.

 

A história da humanidade é marcada por polarizações de todas as ordens, ideológicas, estéticas, políticas, territoriais, esportivas e muitas outras. Os protagonistas e simpatizantes de determinado ponto de vista constroem suas narrativas a partir dos recortes que efetuam de uma determinada situação, de acordo com seus interesses e seus modos de ver as coisas.

 

A partir de 1945, com a Guerra Fria, presenciou-se essa tendência em nível planetário, com o mundo dividido entre simpatizantes pelo socialismo, representado pela Rússia e o capitalismo, tendo na proa os EUA sendo esses dois países os grandes vencedores da II Guerra. E essa polarização não se dava apenas entre nações ou governos, mas penetrava nas microestruturas de cada local, dividindo, até mesmo, membros de uma mesma família.

 

Em 1960, quando essa tensão pareceu atingir o seu auge, com a corrida espacial e armamentista e ditaduras de esquerda e de direita estabeleciam-se por vários cantos do globo, a criação artística e a produção cultural e intelectual viveram uma fase de extrema efervescência e inventividade, injetando oxigênio extra na atmosfera sufocante da subjetividade humana.

 

No Brasil, vivíamos os dias duros decorrentes de um vergonhoso golpe de estado. Em janeiro de 1967, o governo outorgou uma nova constituição, legalizando o regime militar, e, dois meses depois, quando a nova carta magna entrava em vigor, decretou a Lei de Segurança Nacional.

 

Nesse ambiente de exceção, a televisão se tornara um utensílio indispensável para as famílias de classe média, substituindo o papel outrora ocupado pelo rádio e, nessa fase, anterior às grandes novelas, a TV Record monopolizava os programas musicais da TV, que eram a grande atração para quem ficava à noite em casa.

 

Dois desses programas rivalizavam em audiência e predileção, de um lado O FINO DA BOSSA, comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues, e do outro A JOVEM GUARDA, tendo à sua frente Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa. Enquanto o primeiro programa dava ênfase ao samba, à bossa nova e outros estilos identificados como música brasileira genuína, o outro praticava uma música que era filha do rock e flertava com os movimentos de música jovem dos EUA e Inglaterra.

 

Quando a balança começou a pender para a Jovem Guarda, os produtores e apresentadores de O Fino da Bossa, da TV Record, chamaram os principais artistas e compositores que surgiam naquele momento para uma reunião que teve como pauta a defesa de uma espécie de nacionalismo musical, representado pelo seu programa, contra o que eles diziam ser uma invasão Yankee representada pela Jovem Guarda. E elegeram a guitarra elétrica como o símbolo daquele estilo musical “alienígena”.

 

Naquele momento de exceção, em que a ditadura militar era patrocinada pelos EUA, boa parte da intelectualidade e dos agentes culturais que se opunham ao estado de coisas estabelecido passou a identificar o rock e outras manifestações anglo americanas como formas de manipulação e alienação dos brasileiros. Sob bandeiras como nacionalismo e liberdade e com um desejo enorme de participar e decidir o próprio futuro, toda causa era um bom motivo para aquela geração sair às ruas, dar os braços e bradar palavras de ordem.

 

Em um dado momento, a guitarra elétrica mimetizada com o poder maior que parecia representar, de mero instrumento musical transformou-se na grande vilã, servindo de motivação para que certa de 300 jovens saíssem às ruas de São Paulo para protestar, sem perceber a ingenuidade e bizarrice do seu gesto.

 

Há poucos dias, conversei com Caetano Veloso sobre esse episódio. Ele me contou que foi à reunião da Record como uma espécie de conselheiro do Gil, mas os organizadores decidiram que ele poderia permanecer na sala como observador, mas não teria direito à palavra. Uma situação, já em si (e isso é observação minha) bastante autoritária e antidemocrática.

 

Elis Regina foi a grande artista protagonista daquele movimento, em que o nacionalismo se confundia com questões estéticas e principalmente comerciais, pois o pano de fundo daquela manifestação era a sobrevivência do programa O FINO DA BOSSA. Portanto, aquela manifestação possuía dois aspectos, de um lado os artistas e simpatizantes da música brasileira dita genuína em uma marcha que lhes parecia justa e, de outro, os interesses comerciais de uma emissora de televisão.

 

Gilberto Gil acabou indo, em função de seu amor e admiração por Elis, que estava também por gravar duas músicas de sua autoria, mas também pelo senso cívico, não de opor-se à guitarra, mas de fazer a defesa de uma cultura nacional autônoma, tendo a seu lado grandes artistas como Zé Keti, Geraldo Vandré, MPB4 Zimbo Trio e Edu Lobo, entre outros.

 

A impressão que tenho hoje é que os artistas foram praticamente utilizados como massa de manobra pelos cartolas da Record e que o protesto, com seu caráter polarizador, jogava foco em O FINO DA BOSSA, porém, como toda polarização, também servia para realimentar o programa adversário, que possuía outros patrocinadores, mas fazia parte da grade da mesma emissora.

 

Caetano e Nara Leão assistiram à passeata das janelas do Hotel Danúbio, em São Paulo, e Nara ficou deprimida, dizendo a caetano que aquilo parecia uma manifestação do Movimento Integralista, de caráter fascista, com o que Caetano concordou.

 

Pouco depois, Caetano e Gil revolucionariam o Festival da mesma Record acompanhados por bandas de rock (Gil com os Mutantes e Caetano com os argentinos só Beach Boys) e com guitarras distorcidas, inaugurando o que viria a ser o tropicalismo.

 

No Rio Grande do Sul, nos anos 1980, alguns artistas foram apedrejados por colocar teclados e guitarras distorcidas nas suas músicas quando participaram de festivais nativistas.

 

Essas situações, além de sua enorme intransigência, revelam uma cegueira e um atentado contra a evolução estética. É como se estivéssemos sempre diante de uma esfinge pronta a nos devorar se não resolvermos seu enigma. Mudam os tempos e os mitos, mas segue o medo e o espanto diante do novo.

 

Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Antonio Villeroy/Músico em 17/06/2017.