ENTÃO… AUMENTA ESTA GUITARRA, XIRU!
1967 – O ANO ROCK OU MPB?
Músico e professor analisa a resistência à guitarra que teve ponto alto em 1967 com passeata em SP.
Assim como é inútil pressupor que uma marcha contra um instrumento musical poderia resgatar ou proteger “o que é nosso”, marcha esta ocorrida em 17 de junho de 1967 em São Paulo, seria imaginar que Michel Temer e sua corja moralizariam o país através de uma manobra política em maio de 2016, manobra esta mais conhecida como golpe, e ainda, com a conivência de muitos partidos políticos e setores da sociedade organizada.
Mas, vamos a alguns fatos: em 1967 o Brasil contava com três anos de ditadura militar; o presidente Castello Branco falecia em um misterioso acidente aéreo e Costa e Silva assumia a presidência dando início ao período mais truculento da ditadura, se é que se pode estabelecer gradações no medonhismo todo de um período do cerceamento de liberdades; Che Guevara é fuzilado na Bolívia; a América Latina se torna palco de golpes militares orquestrados por setores conservadores e influência estadunidense como se a ameaça comunista/socialista típica da Guerra Fria fosse algo a ser combatido; os The Beatles, após “infinitos” três meses de gravação no estúdio da gravadora EMI em Londres, lançavam em 1º de junho, o álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club band” elevando rock e cultura POP ao status de arte abordando temas como jovens saindo de casa (“She’s Leaving Home”), projeção bem humorada da chegada da velhice (“When I’m Sixty Four”) e outras sacadas contraculturais e artístico-estéticas como unir guitarra, baixo e bateria, instrumentos identificados com a música popular, com instrumentos de orquestra, numa espécie de grande fanfarra psicodélica.
Surgia em Londres o primeiro disco de uma banda que explorava extensas atmosferas sonoras em suas apresentações ao invés de canções pré-determinadas de poucos minutos. “The Piper at Gates of Dawn”, do Pink Floyd; na costa leste, em Nova York, “The Velvet Underground and Nico”, era o disco que trazia urbanidade, roupas e óculos, dicções das ruas e becos e a POP Art de Warhol, para o rock; na Califórnia (US) em 18 de junho de 1967 ocorreu o Monterey Pop Festival, uma espécie de pré-Woodstock (1969) onde o clima de paz e amor anti-guerra-do-Vietnam, consolidou o apogeu precoce de dois então jovens guitarristas como Jimi Hendrix, que tinha lançado o primeiro álbum, “Are you Experienced”, e Pete Townshend (The Who), já com o seu terceiro álbum, na época, “The Who Sell Out”. Ainda: em outubro de 1967 ocorreria o III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. O vencedor foi Edu Lobo, com a música “Ponteio” (Edu Lobo/Capinam) defendida justamente por Edu e Marília Medaglia, mas quem causou furor foram os tropicalistas, Gilberto Gil com Os Mutantes, defendendo “Domingo no Parque”, uma narrativa POP com arranjo de Rogério Duprat que misturava Sgt. Peppers, capoeira, e uma briga de José e João por Juliana tendo um parque de diversões como cenário, e Caetano Veloso, com os argentinos dos Beat Boys, interpretando “Alegria Alegria”, uma marcha-rancho com ares psicodélicos, evocando irreverência e resistência ao período de trevas, ao sugerir uma caminhada “sem lenço / sem documento / nada no bolso / ou nas mãos”.
Como podemos ver, em 1967, o mundo girava rápido. A cultura POP e a utopia socialista em outros continentes, muito além da China, Cuba e URSS, eram decididamente duas das principais armas contra obscurantismos. A impressão que se tem olhando agora, passados 50 anos, é que o mundo tinha ânsia por mudança, por liberdade, por novas direções.
Pois bem, a “Passeata Contra A Guitarra Elétrica”, aconteceu em 17 de junho de 1967, em São Paulo, saindo do Largo São Francisco, chegando diretamente no Teatro Paramount, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, onde ocorreria o programa Frente Ampla da MPB. Seus slogans: “Defender O que É Nosso” e a “Passeata da MPB”. Passado tanto tempo e sabendo dimensionar as reais contribuições que os protagonistas da esdrúxula passeata possibilitaram à cultura nacional,, o esforço é entender esta angulação e toda a sua radicalidade: a passeata era contra um instrumental musical que em outros países ajudava a materializar novos rumos para a música, sendo explorada de várias formas, e jamais carregando a pecha de instrumento de dominação a serviço de alguma ideologia específica. A motivação da passeata, mesmo descabida, era clara: uma preocupação em defender matizes, sonoridades, a temida invasão estrangeira (aqui, através da música / imposição cultural) num período de fragilidade e incertezas sobre o próprio destino de cada um e do país.
As principais presenças foram Elis Regina, Geraldo Vandré, Jair Rodrigues, Zé Keti, Edu Lobo e MPB-4. O então artista emergente na cena cultural de São Paulo, o baiano Gilberto Gil, aderiu pela relação próxima que tinha com estas pessoas, e posteriormente, fez um certo mea-culpa da sua presença no evento, assim como, concluiu com a devida clareza em depoimentos sobre a inutilidade da passeata. Um ponto interessante a ser destacado é que tanto Elis Regina como Gilberto Gil viriam a gravar discos em que o papel da guitarra elétrica tinha destaque; a saber, o disco “Falso Brilhante” (1976), que teve uma turnê de grande êxito pelo país do final de 1975 até início de 1977, contando sua história, vida e carreira, com direito à críticas à ditadura militar brasileira, num clima de teatro circense. Gilberto Gil, por sua vez, gravou inúmeros discos com a presença da guitarra, como “Refazenda”, “Realce” e muitos outros. Este dado comprova um ponto a favor dos dois artistas, que assim, mostraram sua capacidade de reflexão e mudança de ponto de vista e vieram a reconhecer os recursos e possibilidades do instrumento.
A professora de história Valéria Guimarães em seu artigo, “A passeata contra a guitarra elétrica e a “autêntica música brasileira” (Unesp, 2014) aprofunda o tema e traz interessantes angulações. Uma delas, fala sobre as trocas culturais: “As trocas culturais não se dão apenas com um sentido de dominação imperialista, outros fatores estão em jogo na complexa circulação dos artefatos culturais. A música, pelo fato de ser uma das expressões de maior peso da cultura midiática de nossos tempos, é um excelente objeto de pesquisa para observarmos esse fenômeno da interação dos produtos culturais na indústria cultural”. No contexto histórico da passeata, marcado por acirramentos e demarcações ideológicas, em 1967, nem todos conseguiam enxergar esta necessidade de ir além, de entender a necessidade de se informar sobre outras expressividades e materializações dentro das linguagens artísticas oriundas de outros países, como um caminho natural.
Outro fator era a concorrência de programas dentro da própria emissora, TV Record: o programa O FINO DA BOSSA, estrelado por Elis Regina, perdia popularidade para o programa JOVEM GUARDA, estrelado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, junto como os seus convidados, que estreou no ar a partir de 1965 nas tardes de domingo, no horário que antes era ocupado pela transmissão dos jogos do campeonato paulista, na grade de programação. A turma da jovem-guarda conseguiu aos poucos trazer sonoridade para a música brasileira que dialogavam com o que já vinha acontecendo desde os anos 1950 na música pop e no rock’n’roll mundial, tendo como base de lançamento e referência principal, as produções fonográficas estadunidenses. Encontraremos exemplos de todas as variações possíveis do rock’n’roll, seja surf rock, rockabilly, baladas, folk-rock, twist, sendo assimiladas e reprocessadas no mundo todo. De Françoise Hardy / Christophe na França a Gianni Morandi / Rita Pavone na Itália, passando por Terauchi Takeshi and Blue Jeans no Japão e Los Shakers no Uruguai.
Em outra passagem do artigo de Valéria Guimarães sobre o episódio, temos uma interpretação que pode fornecer algo próximo a uma justificativa ou explicação para o ocorrido: o que predominou é uma visão pessimista das trocas culturais com os países estrangeiros; sendo mais comum, como temos visto, à época e mesmo tempos depois, o achincalhe da introdução desse instrumento no cenário musical brasileiro. Assim, a resistência de alguns grupos à guitarra e, por consequência, ao rock de matriz anglo-saxã tinha esse sentido crítico e pessimista que via, em âmbito restrito, a importação de um instrumento estranho à nossa tradição nacional-popular como americanização e imperialismo, e, no âmbito geral, tinha um sentido de combate à expansão da indústria cultural e seus artefatos, considerados, assim, alienantes.
Muita água passou debaixo da ponte da música popular brasileira e é quase desnecessário dizer da riqueza de possibilidades e usos que foram feitos (Mutantes / Lanny Gordin / Bixo da Seda / Novos Baianos / Secos e Molhados / Hélio Delmiro / Sepultura / Frank Solari / Fernando Noronha / Los Hermanos) e o que ainda está por acontecer é sempre um enigma. Meu desfecho é uma sugestão de artigo a ser escrito pelo músico/amigo Márcio Petracco comentando as origens da guitarra elétrica, com suas variações todas, acústica, semi-acústica, e principalmente, a criação das guitarras de corpo maciço de Leo Fender e Les Paul.
Fonte: Correio do Povo/caderno de Sábado/Frank Jorge/Músico e professor da Unisinos em 17/06/2017.