A BELEZA SAGRADA E DIONISÍACA DE UMA GUITARRA ELÉTRICA
INSTRUMENTO-SÍMBOLO
Momentos dionisíacos e revolucionários assustam mentes apolíneas e conservadoras em qualquer manifestação artística. Quando Thomas Edison produziu, em 1895, um pequeno filme com menos de um minuto chamado “O Beijo”, mostrando um casal trocando carinhos de um modo muito mais engraçado que erótico, a Liga das senhoras católicas de Nova Iorque foi para a rua e, com certo apoio popular, conseguiu interditar o filme. Foi o primeiro caso de censura da história do cinema. Muitos outros vieram depois, quase sempre relacionados à exposição de corpos e à manifestação de desejos. A indústria audiovisual soube contornar o problema fazendo com que estes corpos sofressem punições dramáticas nas histórias (depois de atrair os espectadores com cartazes provocantes, é claro) e que esses desejos fossem considerados pecados mortais. Apolo sempre dá um jeito de combater Dionísio.
Coisa parecida aconteceu com a introdução da guitarra elétrica na música popular brasileira. Algo bastante simples, a invenção de uma maneira de aumentar o volume e alterar o timbre de um instrumento de cordas tradicional (o violão), provocou protestos irados de artistas e músicos da MPB e da bossa-nova, que defendiam a suposta brasilidade de nossa música contra um instrumento importado, alienígena, capaz de deturpar manifestações legitimamente nacionais. Xenofobia pura. O patriotismo talvez não seja o último refúgio dos canalhas, como escreveu Samuel Johnson, mas com certeza é o primeiro refúgio dos caretas. O Juremir Machado da Silva me garantiu que Elis Regina participou desse movimento contra a guitarra elétrica, o que me surpreende. Logo ela, que, ao ver Nara Leão apresentando-se com aquela vozinha de três centímetros, declarou que cantaria sempre a plenos pulmões, com sua voz de três quilômetros. Ali Elis foi dionisíaca. Se protestou contra a guitarra, bancou a apolínea. Mas Elis tem mais créditos que débitos. Muito mais.
A guitarra elétrica foi incorporada e legitimada no Brasil pela Jovem Guarda, pelo Rei Roberto Carlos, pelo Tremendão Erasmo, pelos tradutores do “yeah-yeah-yeah” para “iê-iê,iê” (aliás, que bela adaptação, que emociona meu amigo Frank Jorge até hoje). Mas, falando sério, como eram inocentes aquelas letras… Não combinavam com as guitarras. Quem realmente fez da guitarra um instrumento dionisíaco foram roqueiros brazucas de verdade, como Os Mutantes e Raul Seixas. Raul, sempre é bom lembrar, tem dois discos de versões de rock americanos dos anos 50 e 60, prestando suas homenagens a Chuck Berry, Little Richard, Bill Halley, Elvis Presley, Arthur Crudup, Neil Sedaka e muitos outros. Raul tocava violão e guitarra. Raul cantava baião e twist. Raul compunha boleros e rock’n’roll. É claro que uma guitarra tocada em Salvador ou Porto Alegre vai soar diferente de uma guitarra arranhada em Memphis ou Londres. Uma das maiores belezas da música é a eterna troca de influências entre artistas, ritmos e propostas estéticas. A música é sempre mestiça, sempre impura.
A guitarra elétrica atingiu momentos sublimes nas mãos (e na língua) de Jimi Hendrix. No concerto de Monterey, em pleno Verão do Amor na Califórnia, Hendrix fez sexo com sua guitarra e depois incendiou-a. Hendrix encarnou Dionísio com toda radicalidade solicitada pelo deus da volúpia e da incontinência. Para mim, contudo, as guitarras virtuoses de Hendrix, Pete Townshend e david Gilmour, por mais que tenham feito história e embalado minha adolescência, não se comparam ao estilo proletário e agressivo de dois monstros: Keith Richards, nos Stones, e Steve Jones, nos Sex Pistols. A parede de guitarras distorcidas em todas as músicas de “Never Mind the Bollocks” é a Marselhesa do rock, é a revolução mais imporante da história da música popular, é a libertação de um gênero musical que nasceu negro, transgressor e escandaloso para se tornar, pouco a pouco, propriedade de brancos azedos com formação em música erudita e relações fraternas com Apolo.
Tive a sorte de conviver, por muitos anos, com um guitarrista do primeiro time: Claudio Heinz. Aprendi a tocar bateria enquanto ele aprendia a tocar guitarra nos ensaios dos Replicantes. Guardo até hoje registros desses primeiros tempos, em que a simplicidade absoluta dos riffs de duas notas substituía, com ampla vantagem, qualquer sofisticação melódica. Com uma guitarra Rei, uma caixa Giannini e um pedal de distorção, Claudio Heinz simplificava Sex Pistols e dava um acento porto-alegrense para um movimento universal. Quando fomos gravar nosso primeiro LP em São Paulo, contamos com os conselhos de um guitarrista “das antigas”, o Reinaldo Barriga. Na hora de mixar, ele sempre dizia: “Quando tudo parece estar certo, aumenta um pouco a guitarra”. Ele estava certo e sempre estará. Apolo que fique ouvindo violão e bossa nova… Dionísio pede o excesso. Dionísio é o deus do sexo, do vinho e do rock’n’roll. Evoé!
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Carlos Gerbase/Escritor, professor da PUCRS, músico e cineasta em 17/06/2017.