E A TRISTEZA DÁ SAMBA
A música brasileira e sua festa mais popular, o Carnaval, são reconhecidas como manifestações da alegria. Mas é a melancolia que faz o ritmo de fundo.
“É melhor ser alegre que ser triste”, ensina Vinicius de Moraes em SAMBA DA BENÇÃO, parceria com o violinista Baden Powell. Alguns versos adiante, porém, o poeta reconhece que, sem a melancolia, o ritmo desanda: “Porque o samba é a tristeza que balança / E a tristeza tem sempre uma esperança / De um dia não ser mais triste, não”. SAMBA DA BENÇÃO é uma síntese magistral do espírito com que a música brasileira – e em particular seu gênero original, o samba – aborda essa aspiração humana universal – a felicidade. Não se alcança essa utopia sem passar pelo chão da tristeza. Ainda que o colorido exuberante que se vê nos desfiles de rua diga o contrário, a tristeza é a raiz do samba.
Filho direto do choro, do maxixe e de canções de roda dos escravos, o samba – como o blues americano, outro ritmo africano nascido nas Américas – entende de sofrimento. E a alma lusitana também pesa em suas notas mais sorumbáticas: a canção portuguesa, com sua eterna saudade do quinhão natal, contribuiu muito para o gênero – que da Península Ibérica herdou também o violão, o cavaquinho e eventuais bandolins. Há uma série de clássicos do cancioneiro popular que associam saudade a felicidade. Eis o carioca Noel Rosa, em FELICIDADE: “Minha amizade foi-se embora com você / Se ela vier e te trouxer / Que bom, felicidade é que vai ser”. O mineiro Ataulfo Alves revisita o banzo português em MEUS TEMPOS DE CRIANÇA, canção dedicada a sua cidade natal, Muraí: “Ai meu Deus, eu era tão feliz / No meu pequenino Muraí”. O gaúcho Lupicínio Rodrigues, em mais uma composição significativamente intitulada FELICIDADE, diz: “E a saudade no meu peito ainda mora / E é por isso que eu gosto lá de fora / Porque sei que a falsidade não vigora”.
Nessa idealização da terra de nascença como morada da simplicidade e da autenticidade, o morro carioca já foi o lugar mais feliz por excelência – pelo menos, na canção brasileira da primeira metade do século XX, bem antes de a favela converter-se em teatro de guerra de facções criminosas. AVE MARIA DO MORRO, lançada em 1942 por Herivelto Martins, canta o bucolismo de uma vizinhança onde se ouve “a sinfonia de pardais anunciando o anoitecer”. Manifestação já um tanto tardia – de 1968 – mas igualmente bela do mesmo sentimento é ALVORADA, de Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de carvalho: “Alvorada lá no morro / Que beleza / Ninguém chora, não há tristeza / Ninguém sente dissabor”.
A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
A Felicidade, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes
Eu plantei o bem e vou colher o que mereço
A felicidade deve ter meu endereço
O Bem e o mal, de Nelson Cavaquinho
A bossa nova, mais Zona Sul, encarou a felicidade – e sua necessária contraparte, a tristeza – com ânimo filosófico e engenhosidade musical. A FELICIDADE, de Tom Jobim e Vinicius, fala da natureza efêmera e frágil da “ilusão do Carnaval”. A felicidade, diz a canção, é “como a gota / de orvalho numa pétala de flor”. Tom Jobim esmerou-se na tradução sonora desses sentimentos, com um emprego dinâmico de acordes maiores e menores – os primeiros de sonoridade mais solar, os segundos com evocações melancólicas. Em AMOR EM PAZ, o verso “encontrei em você / a razão de viver e de não sofrer mais, nunca mais” é em tom maior, mas a frase “o amor é a coisa mais triste quando se desfaz” já é em menor. Há efeitos similares no samba tradicional: TRISTEZA, que Nilton de Souza criou em 1963 – consagrada três anos depois na voz de Jair Rodrigues –, foi feita para exorcizar um namoro que deu errado, mas a melodia animada,triunfal, em tonalidades maiores, faz com que a canção seja o oposto de seu título.
“Uma canção me consola”, dizia Caetano Veloso em ALEGRIA, ALEGRIA, no ano tropicalista de 1968. E as mais tristes canções têm mesmo essa propriedade de cura. Nelson Cavaquinho, o grande pessimista do samba, é muito lembrado pelo desalento dos versos “tire o seu sorriso do caminho / que eu quero passar com a minha dor”, mas também viu alegria no amor (“contigo aprendi a sorrir”, diz em MINHA FESTA) – e até, no melhor espírito da filosofia grega antiga de um Sócrates na perseguição da vida justa e virtuosa: em O BEM E O MAL, a felicidade vem naturalmente para quem planta o bem. No samba atual, Arlindo Cruz rima felicidade e honestidade, exaltando o trabalho digno: “A felicidade é maior / Para quem se dá mais valor / Honestidade e suor / Eu sou um trabalhador”, ensina ISSO É FELICIDADE, de 2014. A felicidade não precisa acabar na Quarta-feira de Cinzas.
Nelson Cavaquinho
Fonte: Revista VEJA/edição 2569/ano 51/nº 7/14 de fevereiro de 2018. Por Sérgio Martins