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A Arte e o Politicamente Correto
A Arte e o Politicamente Correto

O “POLITICAMENTE CORRETO” NÃO ENTENDE NADA DE ARTE.

 

Diretor analisa a renúncia de Fabiana Cozza ao papel de Ivone Lara no teatro por puro preconceito.

 

Estarrecido. Essa foi a palavra mais precisa que encontrei para me descrever ao terminar de ler o artigo publicado na Folha de S. Paulo do último dia 4 de junho. Ali se informava a renúncia de Fabiana Cozza ao papel de protagonista em DONA IVONE LARA – UM SORRISO NEGRO – O MUSICAL, espetáculo teatral que deve estrear no segundo semestre do corrente ano, no Rio de Janeiro.

 

Fabiana, uma das vozes mais bonitas deste país destemperado, filha de pai negro e mãe branca, estava escalada para interpretar a grande sambista em montagem cuja direção será assinada por Elisio Lopes Jr. e cuja direção musical é de ninguém menos do que o grande compositor e arranjador Rildo Hora. Alvo de críticas ferozes, muitas vindas do movimento negro, pois seria “branca demais” para encarnar dona Ivone, a cantora paulistana escreveu uma dolorida carta de renúncia, onde explica sua decisão. Registro aqui um pequeno, mas incisivo, trecho da mesma: “… o racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro. Renuncio porque falar de racismo no Brasil virou papo de gente “politicamente correta”. E eu sou o avesso.”

 

Grande Fabiana. Nobre Fabiana. Negra Fabiana.

 

É preciso pensar sobre esse episódio absurdo. É preciso dizer que, profunda conhecedora da obra da imortal sambista, da qual gravara diversas composições em seus discos dedicados ao gênero, a cantora chegou a dividir palco algumas vezes com dona Ivone, tamanha a afinidade entre as duas. Em abril do ano passado, pouco antes da morte da veterana sambista, Fabiana Cozza fez uma série de shows em sua homenagem. Também é preciso registrar que foi a própria família da imortal compositora que indicou a cantora paulista para seu papel. Nada disso foi suficiente para que escapasse da metralhadora giratória de uma patrulha que, ao reivindicar o espaço de voz dos excluídos da pátria, age de forma tão nefasta como os demais reacionários grupos do país.

 

Que mundo é esse em que a pressão de pessoas imbuídas de um sentido justiceiro para lá de duvidoso, pressiona uma artista a renunciar a um grande momento da carreira, em nome de uma justiça racial, que em nada seria maculada com sua presença morena, pelo contrário. Que histeria é essa que embaralha todas as pedras do tabuleiro da arte brasileira?

 

O HAMLET de Peter Brook era negro. Um excepcional ator, diga-se de passagem. Dez minutos depois de iniciado o espetáculo, a cor de sua pele era apenas detalhe. O que ali reluzia, na montagem do célebre diretor inglês, era o talento de um jovem ator talhado para o personagem famoso. Quem ousaria dizer que ele não poderia interpretar o papel do príncipe dinamarquês por que era negro? Seria uma desfaçatez colossal, não seria? Aqui mesmo, em Porto Alegre, o grupo Caixa Preta, apresentou uma inesquecível encenação shakespeariana, o HAMLET SINCRÉTICO, que misturava o reino da Dinamarca ao candomblé brasileiro, em resultado fantasticamente bom. Que patrulha bizarra é essa que vem agora querer dizer o que é certo e errado em cima das tábuas de um palco teatral?

 

Esses dias li que, na próxima novela global do horário nobre, Renata Sorrah fora escalada para viver um personagem trans, mas que a emissora desistira dessa escalação diante das ruidosas acusações de homofobia que se seguiram à notícia. Também li entrevista onde uma atriz trans defendia a tese de que apenas um ator trans poderia fazer bem um personagem trans. Essa ideia, na minha concepção de vida e de teatro, está completamente errada. O teatro é o território da liberdade de expressão, sem fronteiras ou dogmas, aonde se mesclam todas as experiências humanas, todos os matizes do “humano, demasiadamente humano” do ser humano. Justamente por isso, quem faz teatro não pode se furtar a essa discussão. Grupos que censuram o universo criativo das artes cênicas não podem ter a última palavra sobre esse tão nobre ofício. Que mundo é esse que não permite a um ator a liberdade de criação de personas diferentes da sua, quando esta é justamente a essência da profissão: o poder plural de poder se transformar em todos os “eus” e personas possíveis. Por que uma mulher não pode ser escalada para recriar um homem? Por que um ator heterossexual não pode compor um personagem gay, ou vice-versa? Por que limitar o voo criativo dos artistas de palco? Por que Fabiana Cozza não pode nos mostrar a sua Ivone Lara? (e olha que ela não é exatamente uma branquela dinamarquesa…) A criação artística tem por base a liberdade e a liberdade de criação é a matéria essencial do teatro.

 

O que está em jogo hoje, aqui, é justamente essa liberdade da qual não podemos abrir mão. Assim como não podemos abrir mão das exposições que têm sido censuradas em nome da moral e dos bons costumes. Assim como não podemos abrir mão de defender a igualdade salarial entre homens e mulheres. Assim como não podemos permitir a discriminação e o assédio sexual nos empregos e na vida social do país.

 

Não é só a existência de grupos organizados de direita que estão embaralhando o jogo. Esses sempre existiram e, quando oportuno, mostram sua força repressora. Mas não posso esconder minha decepção diante de grupos de minorias organizadas que acha correto o desfecho deste atual episódio. Como não achei correta a pressão sobre Fernanda Torres que, ao falar de feminismo em um artigo recente, foi praticamente linchada em praça pública.

 

Lutar contra as injustiças, todas as injustiças, foi a marca da minha geração. Enfrentamos uma ditadura, a censura, a falta de verbas para a Cultura, a difamação do ofício e a escassez de bom senso nesse país kafkiano. O Brasil parece um eterno barril de pólvora, prestes a explodir a qualquer momento. Mesmo assim, cantores e compositores lançam trabalhos incríveis, montagens teatrais mostram vigor e indignação, filmes se insurgem contra o status quo da nossa corrupção banalizada. É com essa turma que me identifico; jamais com aqueles que, m nome do bom senso, se mostram intransigentes e trogloditas.

 

O “politicamente correto”, decididamente, não entende nada de arte.

 

Fonte: Correio do Povo/CS/Luciano Alabarse/Secretário de Cultura de Porto Alegre e diretor teatral em 16/06/2018.