UM TESOURO EM PERIGO
O casarão no Rio que abriga o acervo do positivismo está se deteriorando e já põe em risco relíquias do movimento que influenciou a proclamação da República e a política do século XX.
Em deplorável estado de conservação e sem salvação à vista, o Templo da Humanidade, um casarão na região central do Rio de Janeiro, corre o risco de virar ruína, levando à destruição um pedaço da história da República brasileira. Lá estão arquivados os objetos e documentos mais importantes dos seguidores locais do positivismo, filosofia criada pelo francês Auguste Comte e abraçada por Benjamin Constant e outras figuras da linha de frente da corrente que culminou na derrocada do Império no Brasil, em 1889. interditado pela Defesa Civil desde 2009, quando um pedaço do teto desabou, o prédio guarda um tesouro em panfletos de divulgação de ideias (acervo cuja importância acaba de receber a chancela da Unesco), uma valiosa coleção de livros e os primeiros esboços da mais conhecida entre as heranças positivistas no Brasil, o desenho da bandeira nacional.
Nascido na França, disseminado pelo mundo e defendido com entusiasmo pelos republicanos brasileiros, o movimento idealizado por Comte foi um desdobramento da revolução Francesa e da industrialização. Colocava o pensamento científico e lógico acima de preceitos religiosos e indagações metafísicas. Posteriormente, agregou uma cartilha ética e social para criar uma espécie de antirreligião, a religião do humanismo. Ao lado de conceitos progressistas para a época, a filosofia de Comte incorporava um discurso conservador em sua insistência na lei e na ordem e na veemente pregação da indissolubilidade do casamento.
Embora a corrente positivista tenha se diluído no tempo, sua influência no Brasil foi vasta e sua presença é sentida até hoje em certas instituições. Está na garantia constitucional do Estado laico, nos órgãos de proteção aos índios (valorizar o ser humano era ponto de honra do marechal indianista Cândido Rondon, positivista de carteirinha) e nas leis trabalhistas da era Vargas, um passo essencial para a evolução humana no entender de outro adepto do positivismo, o então ministro do Trabalho, Lindolfo Collor, avô do ex-presidente.
No tempo carioca, onde a cúpula do movimento se instalou em 1897, desfazem-se os rascunhos da bandeira do Brasil, idealizada pelo matemático positivista Raimundo Teixeira Mendes. Ele aproveitou o fundo verde e o losango amarelo do pavilhão do Império e, no centro, desenhou a esfera azul com o Cruzeiro do Sul (reproduzido com precisão milimétrica) e o lema “ordem e progresso”. Tudo a ver com a divisa “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”, de Comte. Um desenho a óleo assinado pelo pintor Décio Villares foi roubado do pprédio há seis anos.
O mesmo artista pintou imagem de Tiradentes que permanece guardada no prédio. O inconfidente sem rosto conhecido ganhou dos positivistas feições parecidas com as de Jesus Cristo e por eles foi alçado à condição de herói brasileiro. No subsolo do templo, uma biblioteca aloja 15.000 livros, muitos deles raridades. Na fila da batalha contra as traças estão uma edição da ILÍADA e da ODISSEIA de 1890, outra de AS VIAGENS DE COOK de 1785 e uma de A DIVINA COMÉDIA, de Dante Alighieri, de1878.
Uma parte do acervo que se deteriora no Templo da Humanidade recebeu, no fim do ano passado, o selo Memória do Mundo, da Unesco, em reconhecimento à sua importância histórica. Trata-se de um conjunto de 500 panfletos e livretos publicados pelos positivistas entre 1881 e a primeira metade do século XX. Os textos versam sobre os mais variados assuntos, como a vacinação obrigatória contra a varíola (eram contra, por ferir direitos individuais), a defesa da separação entre Estado e Igreja e a promoção de melhores condições de trabalho. “Os panfletos são uma chave para entender o debate e as correntes de pensamento da época. Além de comentarem, os positivistas tomavam partido”, diz o historiador José Murilo de Carvalho.
Tombado nas esferas municipal, estadual e federal, o templo jamais teve aporte de verbas públicas. Até recentemente, sobrevivia de sua única fonte de sustento: aplicações decorrentes da venda de imóveis. Agora, a fonte secou inapelavelmente. “É um capítulo da história que precisa ser conhecido pelas futuras gerações, mas já perdemos uns 20% do que está lá dentro”, lamenta o atual presidente, Alexandre Martins. Ironia filosófica: os vizinhos atuais da sede brasileira do positivismo – glorificação da ciência e da lógica – juram que o prédio é mal-assombrado.
Fonte: Revista VEJA/Cecília Ritto em 11/05/2016