A VOLTA DOS ZINEIROS
FORMATO DE PUBLICAÇÃO INDEPENDENTE QUE PERDEU FÔLEGO COM O SURGIMENTO DA INTERNET CONQUISTA JOVENS ARTISTAS GRÁFICOS.
Passaram-se 40 anos desde que a primeira edição de SNIFFIN’GLUE foi lançada por Mark Perry na Inglaterra. Completamente artesanal – feita de fotocópias e grampeada manualmente – a publicação buscava fazer uma cobertura do que acontecia na cena punk inglesa sem o distanciamento característico dos meios de comunicação tradicionais. Era o início da cultura fanzine.
Nos anos 1980 e 1990, os zines se espalharam pelo mundo e passaram a ser utilizados na divulgação da produção artística de subculturas diversas. No Brasil, os zines serviram para que toda uma geração entrasse em contato com bandas independentes durante a década de 90. “Zineiro” veterano, o paulistano Márcio Sno registrou a história do zine no Brasil com o documentário FANZINEIROS DO SÉCULO PASSADO (2011) e com o livro O UNIVERSO PARALELO DO ZINES (2015).
- Os zines divulgavam bandas, literatura, poesia, histórias em quadrinhos, ilustrações e demais artes que não tinham acesso aos veículos de comunicação em massa, pois não tinham com o objetivo principal a indústria cultural – lembra Sno.
No início dos anos 2000, porém, a internet passou a popularizar-se no Brasil. A facilidade da divulgação online eliminou o envio de material impresso, e os fanzines passaram por um período de baixa circulação.
Foi só na segunda década do novo século que os zines reencontraram-se com o público, passando a ser menos informativos e firmando-se como uma plataforma ideal para a exploração artística.
- Os zines tiveram que se adaptar. Os editores optaram por formatos diferentes, buscando texturas e impressões diferenciadas. Todos esses recursos que fazem mais sentido você manusear do que apenas ver uma publicação em PDF no computador – explica Sno.
Hoje, eventos relacionados a zines e à produção gráfica ocorrem em todo o país. Na Capital, a Parada Gráfica está se consolidando como o mais importante deles, depois de três edições anuais – a próxima está marcada para 6 e 7 de agosto –, convivendo com iniciativas mais recentes, como a Feira Rua Sete, cuja primeira edição ocorreu em janeiro. Foi observando essa movimentação que a jornalista Anelise de Carli e um grupo de amigos resolveu montar o Músculo, cuja primeira edição saiu em janeiro de 2014.
- Resolvemos juntar forças. Cada um fazia uma coisa diferente, como fotografia, literatura, artes visuais. A produção poderia ir para a internet, mas o zine é um modo de nos agrupar em um formato que nos atrai. Afinal de contas, todos nós amamos passar horas lendo livros e revistas de papel. É claro que também lemos livros digitais, mas ninguém tem carinho por um pdf. A gente tem carinho pelo objeto impresso – conta Anelise.
Apesar de saber que alguns zineiros mais antigos “torcem o nariz” para os zines contemporâneos mais bem acabados e menos informativos, Anelise julga que a convivência entre gerações é possível:
- É muito legal participar das feiras porque, no final, trocamos os zines que sobraram entre os expositores. Zineiros mais jovens acabam aprendendo com os mais antigos como tudo começou. Já os mais velhos vão entendendo qual será o futuro da publicação. A onda zineira é tão forte que até mesmo o Santander Cultural, que teria orçamento para fazer uma revista, optou por lançar um zine. O Rua Sete – nome também da feira de arte de rua da instituição – foi lançado no final de 2015, com 40 páginas, impressão colorida e tiragem de 3 mil exemplares.
- Ele está mais limpo que zines das décadas de 1980 e 1990, mas o espírito é o mesmo. É um formato que nos dá mais liberdade Para pensar projeto gráfico e pautas diferentes – avalia a editora Maria Luisa Puig Belan.
O pesquisador Jamer Melo, que fez seu mestrado em Educação na UFRGS sobre fanzines, acredita que este é um momento em que o formato está ultrapassando barreiras. Além de informativo, está sendo explorado em sua possibilidade estética. Porém, ele percebe que é possível ir além e usar a publicação também nas salas de aula:
- É um dispositivo que permite uma interação única entre imagem em palavra. Na educação, pode oferecer um choque visual importante. Pode ser usado por professores e alunos como um método de produção de conhecimento não linear, bastante instigante.
ARTE GRÁFICA SUSTENTÁVEL
Produzindo no formato zine desde 2009, o ilustrador leopoldense Diego Gerlach, 35, faz histórias em quadrinhos nas quais aborda personagens e situações urbanas de maneira visceral com um traço poluído.
O zineiro tem materiais publicados pelo selo próprio Vibe Tronxa Comix e em zines que servem como antologias de quadrinhos independentes nacionais, como A Zica e Prego.
- Não tenho muita ilusão de viver como ilustrador comercial. Eu gostaria de poder fazer quadrinhos, ter um selo pequeno, sustentável, com pequenas tiragens. Que eu pudesse ter um material de qualidade – afirma.
O quadrinista destaca o caráter comunitário que existe entre os produtores de fanzines.
- Uma das coisas mais legais é conhecer pessoas que têm uma linha de trabalho parecida. Que entendem desse processo. Mesmo que seja feito em gráfica, o autor vai supervisionar todas as etapas da produção. Existe um cuidado dentro dessa comunidade. Sempre rola uma troca de materiais e de referências.
DE FANZINEIROS A EDITORES
Quando resolveu juntar os amigos para criar o zine Músculo, Anelise de Carli, 26 anos, não havia percebido, mas estava começando uma editora. A publicação era uma iniciativa de compilar em formato físico o trabalho de artistas gráficos e escritores apaixonados pelo formato impresso.
- Era uma maneira de reunir e guardar tudo num mesmo caderno – conta Anelise.
Lançado em janeiro de 2014, o zine encorajou a jornalista e seu parceiro de publicação, o designer e fotógrafo Ricardo Ambus, a editarem também fotolivros e outras peças gráficas. Foi assim que o Músculo se tornou um selo, que hoje conta com 15 títulos lançados, entre fanzines, livros e séries de cartazes. São trabalhos que já circularam por mais de duas dezenas de feiras da Capital, São Paulo e Argentina.
Além de divulgar a produção de jovens artistas, as edições aprofundam a experiência de Anelise com o formato impresso e também servem como portfólio na hora de conseguir trabalhos como diagramadora.
LINGUAGEM EXPLORA TEXTO E DESENHO
Há três anos, um fluxo criativo intenso tomou conta de Adriano Andrade e ele virou a noite explorando as possibilidades artísticas entre palavras e desenhos em folhas de papel. Nascia ali seu primeiro fanzine. Desde então, não abandonou mais o formato.
- Comecei a fazer zines quando me dei conta de que poderia. As ferramentas estão à mão para todos. Qualquer um pode. É mais difícil para um autor jovem ser publicado por uma editora formal, mas o fanzine indica que não é preciso passar por isso – avalia ele.
Adri A., 30 anos, nome que usa para assinar seus trabalhos, vive em Osório e costuma levar seus trabalhos para feiras gráficas na Capital. Com m uito humor, as publicações mesclam quadrinhos e literatura para abordar relacionamentos e sexualidade, como na série CATÁLOGOS ILUSTRADOS DE EX-NAMORADOS, e também flertam com o realismo fantástico, como em O BARATO DA BIA.
- Gosto muito da experimentação que o formato permite, como usar papéis e técnicas diferentes, desde xerox a impressão digital e serigrafia – conta Adri A.
COLAGENS, ILUSTRAÇÕES E MUITO MAIS
Jéssica Nakaema, 27, é designer e atua na produção de fanzines. A paulistana é uma das coordenadoras da editora independente Desvio, responsável pelo lançamento de zines voltados a colagens, ilustrações e artes gráficas em geral. Segundo Jéssica, a editora é aberta a artistas que tenham interesse em publicar seus trabalhos.
- Fazemos parcerias com artistas que querem publicar algo. Às vezes,o pessoal tem interesse, mas não sabem montar e diagramar um zine. Decidimos juntos como vai ser a divisão dos custos e produzimos o material – explica.
Envolvida com zines desde 2008, a designer também utiliza do formato para publicar seus próprios trabalhos de cunho não comercial.
- Tenho umas frases nas quais eu desenho mais, em outras, faço mais colagens. Atualmente tô com dois fotozines meio “empacados” – afirma.
A versatilidade do zine é um dos elementos que atraem Jéssica, que utiliza do meio como uma espécie de escape criativo. A designer destaca a versatilidade do formato.
- Dá pra fazer zine de qualquer coisa. Dá pra fazer zine de receitas, dá pra fazer zine de fotos, zine informativo. É um universo muito amplo – conta
Fonte: ZeroHora/SegundoCaderno/Alexandre Lucchese (alexandre.lucchese@zerohora.com.br) e Henrique Coradini/Especial em 11 de março de 2016.