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Entrevista com Leandro Valiati
Entrevista com Leandro Valiati

COM A PALAVRA: LEANDRO VALIATI

 

Economista, 37 anos. Professor da UFRGS e referência nacional nas áreas de economia criativa e economia da cultura.

 

UMA SOCIEDADE PRECISA DA DIFERENÇA. E PRECISA QUE EXERCÍCIOS LÚDICOS ACONTEÇAM.

 

Nos estudos econômicos, os pesquisadores que se dedicam ao impacto da cultura e das indústrias criativas costumam ser vistos como espécies de quixotes. O próprio termo “economias criativas”, que envolve artes, design, arquitetura, software, games e outros domínios, aguarda mais divulgação. Mas, para Leandro Valiati, cultura e desenvolvimento não estão separados: a economia criativa deve ser um componente estratégico de qualquer modelo de nação coerente com nosso tempo. É a realidade da França e da Inglaterra, mas um cenário distante do Brasil. Valiati é um dos maiores especialistas sobre o tema no país. Coordena o Núcleo de estudos em Economia Criativa e da Cultura (Neccult) da UFRGS, que tem convênios com quatro universidades europeias e produz estudos para o Ministério da Cultura, acompanhando as políticas públicas da área. Nesta entrevista, ele explica por que cultura é fundamental e desfaz mal-entendidos sobre mecanismos como a Lei Rouanet.

 

Por que parte da sociedade tem uma visão negativa dos artistas? Criou-se em alguns setores uma demonização do financiamento público à cultura, mesmo que represente menos de 1% dos orçamentos públicos.

Esse debate tem raízes na necessidade de o Brasil buscar um modelo de desenvolvimento. Pode parecer vago, mas não é. Nossa democracia representativa vive uma crise em todos os setores. Há uma grande polarização e descrédito, seja por qualquer viés. É uma democracia frágil, embasada em um modelo de desenvolvimento que não é claro. Sabemos que o modelo chinês é o da mão de obra barata, em larga escala, produzindo bens que vão ganhar o mercado externo, deixando pouco impacto em termos de melhoria do ambiente social. Um modelo que envolve sofisticação do processo produtivo deve pensar em melhor distribuição dos resultados entre lucros e salários e atividades que envolvem resultados vinculados à melhora da autoestima. Diversos países adotam modelos econômicos que olham para isso. Temos que pensar qual é nosso ideal. Nos últimos anos, o Brasil teve ganhos sociais importantes, mas teve um projeto econômico muito vinculado ao consumo. Quando se perde, na crise, o poder de consumir, começa-se a achar que a vida está horrível, porque não há espaços sociais para se realizar sem consumir. Isso só criou condições para que o Brasil tivesse essa enorme crise que afeta a política, a economia e a sociedade. Perdemos uma grande oportunidade de fazer políticas corretas de inclusão social, de criar estruturas de desenvolvimento. E chegamos a um momento em que a sociedade, clamando para sair da crise, cria apoio a um governo que toma o poder para implementar uma agenda regressiva em relação a direitos sociais e qualidade de vida. Esse modelo de desenvolvimento não foi eleito pelo país. Está vinculado à regressão de direitos sociais para apoiar o lucro de rentistas, grandes empresários e grandes exploradores da agricultura. Esse pano de fundo é catastrófico. A sociedade clama por melhoria de vida, mas nosso modelo de desenvolvimento, se é que existe um modelo, vai contra isso. Soma-se a isso um processo de corrupção terrível. Quando alguém fala que artista é vagabundo, está verbalizando esse processo confuso em que se quer achar culpados de maneira simplista.

 

Qual é o real impacto do financiamento público à cultura no orçamento do governo federal?

Em 2017, a cultura representou 0,62% do total de subsídios fiscais concedidos pelo governo. Subsídio é um contrato social. A sociedade está dizendo que abre mão de impostos que seriam revertidos para o ambiente social para que essa atividade se fortaleça porque é boa socialmente. Só para ter uma comparação: entidades sem fins lucrativos de educação – as universidades – representam l,32%, mais do que o dobro da cultura. Não estou apontando a universidade A ou B, mas será que não seria o caso de se rediscutir se universidades privadas que têm modelos de negócio totalmente de mercado devem ter incentivo fiscal? O subsídio ao setor automotivo é de 0,82%. O que queremos? Automóveis nas ruas ou crianças usando a música como forma de vencer a vulnerabilidade social nas favelas brasileiras? Outra comparação: igrejas e associações civis têm, juntas, mais do que o dobro da renúncia fiscal para a cultura. Se eu olho as despesas médicas que são lançadas no Imposto de Renda, dá sete vezes e meia mais do que o valor de renúncia fiscal para a cultura. É o subsídio que a sociedade dá para as classes médias e altas, que não usam o SUS. Ou seja, quem paga plano de saúde privado divide seu custo com a sociedade no seu Imposto de Renda todos os anos. Para a classe média, é ótimo. Mas e para o todo da sociedade? Em linhas gerais, a renúncia fiscal para a cultura é baixa. Dizer que “arista é vagabundo” é de um reducionismo gigantesco. Outra coisa: uma sociedade precisa da diferença. Precisa da produção de atividades que façam com que exercícios lúdicos aconteçam. Isso faz com que a sociedade pense melhor, vote melhor. Nos permite ser uma sociedade ais agradável de se viver e talvez possa nos ajudar a sair dessa crise em que nos encontramos.

  

No cenário internacional, quais são os modelos de ponta na valorização da economia criativa?

No mundo, há dois modelos importantes, que são diferentes entre si: o francês e inglês. O modelo francês, assim como o brasileiro, é muito baseado na proteção ao valor cultural local pelo Estado. Essa proteção é levada a esferas importantes, como a Organização Mundial do Comércio (OMC). No sistema global de governança de comércio, há sempre disputas sobre regimes concorrenciais. Por exemplo, o Brasil vai discutir se o algodão americano pode competir com o brasileiro ou não. Tradicionalmente, a indústria cultural não vinha entrando em discussão na OMC. Antes, era presumido como aquilo que tem menos importância econômica, que entra sempre como contrapartida nas negociações. A França inaugura, de certa forma, um grande debate sobre como os bens culturais têm, sim, uma importância e devem ser exceção quando se fala em competição. Em outras palavras, não significa quebra de competição estabelecer cota para filmes locais nos seus cinemas. A França defende que não pode ser taxada em outros produtos na OMC se estabelecer uma cota para o seu cinema porque está protegendo seu patrimônio cultural local. Contemporaneamente, a França tem se posicionado de forma interessante na lógica da proteção ao direito de propriedade intelectual, na questão da regulação de plataformas de streaming para preservar espaço para conteúdo local, na descentralização dos projetos de cultura. Essa contribuição francesa é importante.

 

No Brasil também se debatem as cotas de produção nacional no cinema e na TV. Há uma corrente que acha que essa produção deveria se impor pela qualidade, sem a necessidade de cotas. Qual a sua visão?

É fundamental ter cotas. Esse tipo de mercado não existe sem regulação. Se não, vai haver monopólio. Olha o poder competitivo dos EUA no mundo. Como a indústria nacional vai competir com isso? O Brasil tem uma lei de ponta feita pela Agência Nacional do Cinema (Ancine). Prevê um terço de conteúdo nacional na TV paga. Se isso fosse imposto para a TV aberta, teríamos um nível bem mais alto na TV nacional como um todo.

  

E quanto ao modelo inglês de economia criativa como parte do modelo de desenvolvimento? O que pode servir de lição para o Brasil?

Em 1997, com Tony Blair como primeiro-ministro, em meio à perda de indústrias básicas de matérias-primas para a China, a Inglaterra criou um programa estratégico de desenvolvimento das indústrias criativas que se tornou uma grande referência. Criou a Cool Britannia, um branding que envolve indústria cultural, design, software, cinema, games, gastronomia. Não é à toa que surgem as Spice Girls e que Noel Gallagher vai brindar com Tony Blair em Downing Street. Não é à toa que Jamie Oliver surge como chef. Não foi só um jogo de marketing. Teve todo um processo de formação. O trabalhador da indústria automobilística agora podia se capacitar para trabalhar em outra área. Aumentava salário e também produtividade. Isso jogou a economia para cima. A Inglaterra começou a atrair cérebros e criou um programa de revitalização urbana de Londres com base nessa visão. Vou muito à Inglaterra. Todas as instituições com as quais converso falam a mesma língua. Não trabalham necessariamente juntas, mas estão em sintonia. Ou seja, há um modelo. Com o governo financiando pesquisa e inovação, com a universidade e o empreendedorismo andando juntos. Quase 6% dos empregos da Inglaterra hoje, vêm da indústria criativa. Mas há um problema: dos trabalhos dessa indústria, apenas 11% são de negros e minorias étnicas, enquanto o restante da economia da Inglaterra está muito acima desse percentual. Há uma concentração de etnia e de gênero. E o pior: praticamente 92% dos trabalhadores dessas indústrias na Inglaterra fazem parte de grupos socioeconômicos privilegiados, aquelas duas ou três maiores faixas de renda. Então, há concentração de renda, gênero, etnia e raça.

 

Por que, no Brasil, há retração do investimento na economia criativa?

O Reino Unido percebeu que incentivar a economia nesses grupos gera benefícios. No Brasil, fazemos um debate tacanho sobre esquerda e direita. O pensamento liberal da direita no Brasil está associado a grupos retrógrados, que olham para o passado, para atividades concentradoras de renda, com pouca produtividade, como a agricultura extensiva, que foca apenas na exportação e não se preocupa muito com o mercado interno. Ao grande capital interessam os monopólios. As indústrias criativas precisam ser heterogêneas. O pensamento liberal, de direita, no Brasil, está muito vinculado a esse discurso retrógrado. Não representa um modelo aderente ao mundo contemporâneo. Assim como Trump, nos EUA, e o Brexit, na Inglaterra, são também pensamentos anacrônicos. Nesse caso, é um antiliberalismo que se estabelece. Quando se fala de mercado hoje, o e-commerce tem um poder violento. As possibilidades de modelo de negócio e monetizações que envolvem essas novas tecnologias – que são por essência mundiais, abertas e liberalizantes do ponto de vista do comércio – são gigantescas. Assim é produzida hoje grade parte da riqueza do mundo. Então, você tem de criar condições para se inserir como protagonista nesses processos. E o Brasil tem todos os insumos na nossa cultura. Tem o valor inclusive de propriedade intelectual da Amazônia, dos remédios e perfumes… Mas prefere fazer extrativismo das florestas.

 

A Lei Rouanet tem sido muito debatida. Às vezes se cria um barulho quando artistas que supostamente não precisariam da renúncia fiscal obtêm aprovação para captar por esse sistema. Por que há tanta polêmica?

O Brasil criou um modelo de incentivo à cultura que gerou os problemas da lei Rouanet. No início do governo Collor, o Ministério da Cultura (MinC) foi rebaixado à condição de secretaria, algo que o atual governo tentou fazer. Naquele momento (início dos anos 1990), pensou-se em uma lei que atraísse recursos para a cultura que não precisassem passar direto pelo orçamento da União. Se uma empresa usa o instrumento de renúncia fiscal para apoiar um projeto, ao invés de recolher o imposto, ela dá o dinheiro para um projeto cultural e declara no Imposto de Renda. É uma maneira de aproximar o empresariado da cultura, e isso é bom porque estimula essa atividade, além de possibilitar a existência dessas atividades que, naquele momento, estavam em situação terrível. Parênteses: a cultura é subsidiada no mundo inteiro. Mas uma lei de regulação econômica deve ter uma estratégia. Aqui, a estratégia era criar um envolvimento da classe empresarial com os artistas que se fortalecesse até que não se precisasse mais de incentivo público. Mas isso não aconteceu. Criou-se uma relação de dependência, piorada pela situação orçamentária do MinC. A Lei Rouanet é só mais um instrumento do ministério, mas que ganhou enorme importância em termos orçamentários, não porque aumentou muito, mas porque o orçamento do MinC foi se estagnando. Outro problema é colocar um artista popular no mesmo patamar de outro que tem menos exposição. O que a empresa vai fazer? Vai colocar seus recursos naquilo que retorna em imagem e TV. É preciso fazer uma gradação que trate atividades diferentes, com poder de mercado diferentes, como coisas diferentes. O sistema precisa ser amadurecido.

 

Por que não há mais empresas investindo diretamente na cultura, sem renúncia fiscal?

É o problema de expectativas criado pela Lei Rouanet. Estabeleceu-se um mercado em que as empresas buscam o maior retorno possível quando fazem apoio à cultura. Mas não deveria ser investimento, afial, estamos falando de dinheiro público, de imposto não pago. A lei dá essa brecha. O que falta é regulação. Há modelos por aí que fazem o seguinte: “Quer associar o nome de sua empresa a um grande evento financiado com dinheiro público? Ok. Mas você tem de apoiar outras atividades menos midiáticas. Ou você pode ser um investidor: o governo vai apoiar 30%, você apoia 70% e a gente divide os resultados”. Estou falando desse tipo de sintonia fina.

 

A realidade da cultura gaúcha ainda esbarra em problemas básicos, como equipamentos fechados para reformas que nunca terminam. O que deve ser feito para que a cultura local floresça nesse cenário difícil?

A questão passa por todos os agentes desse mercado – governo, artistas, produtores e público. Para sobreviver a esse momento, é necessário ter um programa de ações. Em alguma medida, o Estado e a prefeitura têm de se comprometer em manter os espaços funcionando, ou seja, tornar isso prioridade, por tudo o que já falamos sobre a importância da cultura. Já a classe artística deve tentar pensar em alternativas. Compartilhar financiamentos e mesmo produções. Citando meu amigo Paul Heritage, da Universidade Queen Mary: Shakespeare criou a grande indústria cultural inglesa porque fazia a população menos rica ir ao teatro em áreas que os nobres não frequentavam. Por que o teatro inglês funciona bem hoje? As companhias não param. Montam uma peça e já estão pensando em outra. Há continuidade. Dilui-se o investimento inicial de um projeto, porque a pesquisa se estende e rende vários espetáculos com a mesma equipe. O problema no Brasil é que as coisas começam e terminam no curto prazo. Isso gera uma rede frágil. A situação do Rio Grande do Sul implica necessariamente um projeto. O poder público entende que isso pode gerar emprego e inclusive contribuir para a segurança pública? Áreas de consumo cultural têm movimento. Você cria vivências, ocupações nas cidades. Esse discurso epidêmico no Brasil de que cultura é supérflua é tacanho. Há impacto econômico. Há muito mais possibilidade de criar desenvolvimento nessas atividades do que numa fábrica do século 20 em que você cola parafuso ganhando um salário péssimo.

 

Os artistas reclamam de falta de público e por outro lado, parte da população demonstra preconceito com o que é nacional e local. Como equacionar isso?

Precisamos de um programa de formação de público para consumo cultural. Até agora, falamos sobre oferta: como produzir e financiar. Mas e a demanda? Essa formação de demanda, para mim, tem uma estratégia de longo prazo e outra de curto prazo. A de longo prazo tem a ver com educação. É ensinar, na escola, o menino a tocar violão, por exemplo. Pode não fazê-lo um músico, mas certamente o fará um consumidor de música. No curto prazo, precisamos baixar os preços das atividades culturais. Em outros países, o consumo cultural é mais fácil. Você vai ao teatro como quem vai à praça. Aqui, as pessoas querem se distinguir socialmente indo ao teatro. O teatro tem que ser caro, em lugares inacessíveis. Se a cultura for dessacralizada, o público consumidor aumenta.

  

Por que uma pessoa de baixa renda não entra no museu, mesmo sendo de graça?

Vejo os pobres dizendo coisas como “Não tenho roupa para ir”, “O segurança não vai me deixar entrar”, “Não entendo bem quando leio as descrições da obra”. O que ocorre é que quem diz isso, quando criança, não teve acesso à escola. Aí se torna jovem e é puxado para outras coisas de consumo, que também são cultura, mas perde a noção do todo. O investimento precisa ser feito lá atrás, quando a criança deve sentir inclusive que a cultura pode melhorar a condição social. Sentir-se fazendo parte de um concerto de música gratuito pode ser o primeiro passo para esse jovem de baixa renda se tornar um músico, por exemplo.

 

Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/Fábio Prikladnicki (fabio.pri@zerohora.com.br) em 11/03/2018.