UMA VOZ COSMOPOLITA
Os diários de Joaquim Nabuco mostram como o intelectual formou suas ideias sobre o Brasil a partir da comparação com os países que visitou.
Num país de provincianos, o pernambucano Joaquim Nabuco (1849-1910) foi um cosmopolita que passou boa parte da vida fora do Brasil. Escritor, diplomata de carreira e político, fez história como a principal voz contra a escravidão. Gostava tanto de viajar que, quando lhe perguntavam quais os livros prediletos de sua estante pessoal, ele costumava responder: “Os meus Baedeker”, referindo-se à mais famosa coleção de guias turísticos do século XIX, publicada pelo alemão Karl Baedeker. Das terras que visitava, aprendia os costumes, avaliava a política e a economia e, principalmente, fazia comparações com o Brasil. A grande originalidade de obras como Minha Formação é o cotejo do Brasil com outros países. Nesse exercício Nabuco dizia muito sobre o que o Brasil era e mais ainda sobre o que poderia ter sido. Lançado em Agosto/2005, os Diários de Joaquim Nabuco (Editora Bem-Te-Vi, dois volumes de 310 e 535 páginas, vendidos juntos). A obra, com prefácio e notas do historiador Evaldo Cabral de Mello e organização da escritora Lélia Coelho Frota, tem como principal atrativo os relatos das viagens do intelectual, entremeados de reflexões. Na parte m ais interessante, a primeira, em que um jovem Joaquim Nabuco narra suas impressões iniciais sobre a Europa e os Estados Unidos, leem-se os germes das ideias que o autor desenvolveria mais tarde em sua obra.
Em um tempo em que a maior parte da intelectualidade brasileira tinha influência francesa. Nabuco se definia como um admirador da cultura anglo-saxônica. Foi Londres, e não Paris, a cidade que mais o impressionou em sua viagem de formação à Europa, entre 1873 e 1874. Ele voltaria à capital inglesa em muitas outras ocasiões, numa delas para redigir sua obra-prima como polemista, O Abolicionismo. Nabuco achava que a monarquia parlamentar britânica era o melhor entre os regimes de governo e defendia sua implantação no Brasil. Entrou para a história, no entanto, como americanófilo, por emular, já na idade madura, a chamada Doutrina Monroe, segundo a qual as nações do continente deveriam formar um bloco liderado pelos Estados Unidos. Nabuco é um admirador confesso da Inglaterra, mas a extensão de seu fascínio, ainda na juventude, pelo país de Thomas Jefferson – uma relação de amor e ódio, diga-se – é a novidade mais interessante dos Diários. Ele desembarcou nos EUA em 1876 para seu primeiro posto diplomático no exterior, como adido da embaixada brasileira em Washington. Num primeiro momento, detestou o que viu. Achava a cultura do país materialista, seus habitantes gananciosos e a política um meio corrupto em que as nulidades triunfavam, ao contrário do que ocorria na Inglaterra, onde a monarquia garantia que os melhores tivessem assento no governo. Com o tempo, passou a ver o lado positivo dessas mesmas características: o pragmatismo da cultura, o empreendedorismo dos habitantes e um sistema político no qual não eram tão importantes os melhores, já que as instituições funcionavam bem. Ou, como ele escreveria mais tarde em Minha Formação: “O governo tem uma capacidade limitada de fazer mal”.
O que o fascinava nos Estados Unidos era, acima de tudo, a percepção de que aquela sociedade representava o futuro, enquanto a aristocrática Europa olhava para o passado. Num dos trechos mais impressionantes dos Diários, Nabuco antevê a globalização. Ele achava que, num mundo interligado pelo telégrafo (imagine se ele tivesse experimentado a internet...), os hábitos dos homens tenderiam a se uniformizar, e isso propagaria o estilo americano, “que realiza perfeitamente que a vida é um business e que é preciso o dólar para não falir nela”. O olhar aguçado sobre o país não se limita à política nem ao mundo dos negócios. Nabuco, que na juventude alimentou veleidades de ficcionista, era também um arguto observador dos costumes. Habituado aos padrões brasileiros e europeus, mais liberais, ele se espantava com o puritanismo americano, sobretudo com a fidelidade no casamento. Quem conhece a biografia de Nabuco sabe que ele advogava em causa própria. Com 1,86 metro de altura, bigodão aprumado e ternos impecáveis, o pernambucano era conhecido como “Quincas, o Belo” e cultivava fama de namorador, tendo entre seus alvos preferenciais as mulheres casadas. Na França e no Brasil, fazia frequentemente o papel que Giacomo Casanova chamava de “cavaliere servente”, o amante jovem que espantava o tédio dos matrimônios maduros. Nos Estados Unidos, suas investidas nessa seara não passaram de flertes. “Fora do casamento não há nada aqui”, anotou, com uma ponta de frustração, numa das páginas dos Diários.
Os críticos que analisam Joaquim Nabuco com critérios de hoje apontam duas nódoas em sua obra. A primeira é que, embora tenha sido aguerrido combatente da escravidão, Nabuco não contestava a existência de raças superiores e inferiores. A seu favor, diga-se que a ideia da hierarquia das raças era predominante. Os célebres antiescravistas do século XIX, entre eles o presidente americano Abraham Lincoln, pregavam a igualdade de oportunidades na escola, no serviço público e perante a lei para os homens de todas as raças. Mas nenhum deles aceitou totalmente a ideia de que negros e índios pudessem ser iguais aos brancos. Lincoln fez uma guerra civil não para acabar com a escravidão, mas para manter a união dos Estados Unidos. O presidente americano, no entanto, acalentou a ideia de que, uma vez libertos, os escravos negros dos EUA se mudassem para o México e para países da América Central.
Nabuco chegou até a enxergar mais longe do que a cultura do seu tempo permitia ao apontar a miscigenação como traço distinto da cultura brasileira; Sobre esse alicerce, anos mais tarde Gilberto Freyre erigiria Casa Grande e Senzala – livro que, lançado em pleno nazismo, teve o efeito de um libelo antieugenia. Outra ideia polêmica de Nabuco foi a defesa ferrenha da monarquia brasileira. Além do componente afetivo – os Nabuco de Araújo mantinham ligações com a família imperial – a convicção tem boa dose de pragmatismo. Joaquim Nabuco sabia que um país de instituições fracas como o Brasil não seria transformado pela república, do dia para a noite, numa democracia sólida como a americana. Ele temia que o Brasil ficasse mais parecido mesmo com a Bolívia – o que, descontado o exagero, efetivamente ocorreu.
Em parte por seu pendor monarquista. Nabuco se retirou da política pouco depois da proclamação da República, tendo visto o triunfo da causa que norteou sua vida, a abolição. É algo a ser lamentado. Em Minha Formação, editado em 1900, ele critica o fato de que a corrente abolicionista ter refluído no dia seguinte à assinatura da Lei Áurea, quando seriam necessárias “medidas sociais complementares” em benefício dos libertados, como a educação. É de ideias assim que os grandes países são feitos. Os estados Unidos não seriam o que são hoje se os “pais da pátria” não tivessem insistido na educação de massas como base do ideal de igualdade. Ou, para ficar num exemplo mais próximo, a Argentina não seria a nação com a maior qualidade de vida da América latina em boa parte do século XX se Domingo Faustino Sarmiento não tivesse importado, no século anterior, o modelo educacional americano. É uma pena que a república brasileira tenha sido fundada por militares de vocação autoritária como Floriano Peixoto e bacharéis beletristas como Rui Barbosa, e não por democratas de ideias sólidas como Joaquim Nabuco.
ANTEVENDO A GLOBALIZAÇÃO
“O telégrafo, pondo o mundo todo em contato, desenvolve muito a solidariedade humana. (...) Vive-se hoje quanto à soma de impressões de cada hora cem vezes mais do que antigamente, porque elas não nos vem de todos os cantos da terra. A princípio isso determina uma certa excitabilidade nervosa, mas talvez acabe por produzir uma inteira insensibilidade. Estive neste país durante grandes acontecimentos: depois de ver a efervescência que eles produzem, é agradável ver a calma em que se deixam esquecer.” Em 26/4/1877
SOBRE OS ESTADOS UNIDOS
“Não se pode dizer deste país que ele tem ideal. É o país prático por excelência, que tem a admirável qualidade de bem ou mal governar-se a si mesmo. Não lhe falta ‘manhood’ (virilidade), mas tudo nele serve a fins materiais. A instrução pública, que era tão desenvolvida, só tem tido esse desenvolvimento por ser um elemento do “business”. Ganhar dinheiro é o fim real da sociedade americana.” 17/07/1877
SOBRE O BRASIL
“Cada vez mais me convenço de que a civilização no país acabou com a monarquia. O que há são restos dela. Não há mais princípio que detenha ninguém, nem pressão social que impossibilite os piores atentados. (...) A classe de homens que governam é inverossímil, os processos de governo uns torpes, outros indignos, outros ridículos. Copiam os decretos da coleção sul-americana, dos estados de sítios orientais, argentinos, bolivianos, que sei eu? A adulação dos jornais ao ditador é tão grosseira como a dos guaranis do Paraguai. É uma boêmia política de ceroulas e chinelas, como não se viu nunca mais desprezível, que nos governa.” 17/10/1893
Fonte: Revista Veja/João Gabriel de Lima