SEMPRE EXISTIRÃO GRANDES CRIADORES
ENTREVISTA: DERRICK DE KERCKHOVE
Nascido na Bélgica, professor no Canadá, morando atualmente na Itália, diretor durante um quarto de século do Programa McLuhan em Cultura e Tecnologia da Universidade de Toronto, discípulo do autor da célebre frase “o meio é a mensagem”, Derrick de Kerckhove, 73 anos, convidado do 14º Seminário Internacional da Comunicação da PUCRS, concedeu esta entrevista para o Caderno de Sábado.
Por Juremir Machado da Silva
Todas essas tecnologias disseminadas por toda parte, que vão da internet ao smartphone, servem para libertar as pessoas ou para criar uma espécie de nova escravidão?
A palavra escravidão é forte demais. A liberdade produzida por essas tecnologias é real. As liberdades na vida cotidiana aumentaram. A possibilidade de contatar pessoas a qualquer omento, pois espaço e preço não são mais um problema, constitui um ganho de liberdade. Mas o acúmulo de comunicações e de conexões dá a impressão de que nos tornamos prisioneiros. Em A MÁQUINA INFERNAL, de Jean Cocteau, h´´a uma passagem extraordinária na qual a esfinge diz a Édipo: “Se não deres a boa resposta à minha questão eis o que farei contigo: vou te amarrar com os fios de todos os raciocínios e poderei te asfixiar puxando um só desses fios”. O sentimental Cocteau achava que a esfinge estava apaixonada por Édipo. Com as redes pode acontecer o mesmo: basta puxar um fio para se dar o estrangulamento total. Vivemos em três espaços: o físico, do corpo, o mental e o virtual, digital. Este, ao mesmo tempo, é libertação do espaço físico, um aprisionamento e um jogo com o espaço mental. Um jogo de poder. Ainda não acabou. Talvez consigamos nos defender dessa hegemonia. Nas culturas orais é o corpo que fala. A linguagem tem poder sobre o corpo. E a linguagem do pai, só sacerdote, do irmão. A escrita e a leitura interiorizam a linguagem. O corpo passa a dominar a linguagem. Com o eletrônico nos voltamos a perder o poder sobre a linguagem, revelamos nossa intimidade ao mundo, deixamos rastros de tudo o que fazemos, mas podemos talvez ainda negociar uma liberdade mental em relação ao virtual. Por enquanto, exportamos nosso interior e importamos as rotinas dos algoritmos. O Ser é transformado. A grande diferença entre o panóptico e a situação atual é que a vigilância daquele não podia controlar tudo ao mesmo tempo. O guarda na sua torre de controle dava as costas a uns para vigiar outros. No não-óptico de agora todos são controlados permanentemente sem que haja um culpado. É uma máquina que transforma os seus usuários também em máquinas.
Um desses dispositivos é mais perigoso do que os outros?
O smartphone. Depositamos tudo nele. Quando roubaram meu laptop eu disse a um amigo: sofri uma lobotomia. Não se trata apenas da perda de uma enorme porção da memória, mas do fato que já não funcionamos sem ela. É uma máquina de “descerebralização”.
Como especialista e discípulo de Marshall McLuhan, que falava das tecnologias como extensões do humano, como vê essa relação do usuário com o smartphone: ampliação da memória ou sua eliminação?
É a eliminação da nossa memória. Mas sejamos prudentes quanto a dizer se isso tudo é bom ou ruim. No Renascimento aconteceu o contrário. Estava-se saindo de uma cultura comunitária com seus jogos de poder controlados pela Igreja e entrando numa nova era. O protestantismo criaria um Eu que se apropriaria de conhecimento até então transmitido oralmente e produziria um novo poder sobre a linguagem. O Renascimento inventou a inquisição, uma forma de entrar pelo questionamento no corpo de cada um para acessar o seu conteúdo. Não havia segredo antes. Uma cultura tribal não tem segredos. Somos nós os hipócritas. O que está acontecendo agora foi previsto por Michel Foucault quando disse que o homem como o concebemos hoje era uma invenção recente, do tempo do Renascimento, que não vai durar. McLuhan disse o mesmo: o indivíduo como tal será eliminado pela eletricidade e tentar resistir será como querer evitar um tsunami.
McLuhan estava certo nas suas previsões?
Infelizmente.
O homem do Renascimento está morto?
Eu ainda teno defendê-lo. Gosto de ter um ego. É algo que me serve. Levamos séculos para alcançar nossa autonomia. Fizemos revoluções para mudar os sistemas políticos. Tivemos de nos matar por isso. Não podemos abrir mão disso tão facilmente. Eis o problema. Em contrapartida, McLuhan continua tendo razão no sentido de que um dia haverá câmeras nos banheiros, que não serão mais cosiderados como lugares privados ou de coisas sujas. As pessoas mudarão de ideia sobre elas mesmas a partir do momento em que forem totalmente rastreadas e estiverem nuas diante de todos.
Isso parece uma distopia e uma forma de escravidão.
Oscilamos entre o Leviatã, sendo, como dizia McLuhan, os órgãos sexuais das máquinas, e a autonomia pela qual lutamos por séculos. O que fazemos? Fazemos robôs semelhantes a nós.
Teremos, nós humanos, uma utilidade no futuro? Se formos libertados do trabalho o que faremos de nossos dias e forças?
A inteligência artificial, essencial para o que somos hoje, a sofisticação dos algoritmos e todas as tecnologias que conhecemos ainda não chegaram à maturação. A ideia de que todo mundo ficará sem trabalho ou de que as tarefas repetitivas serão eliminadas é uma especulação, assim como a ideia de que máquinas farão arte. Há pouco, um chinês, especialista em robótica, criou uma linda representação de uma bela jovem e se casou com ela. A questão é: se chegarmos a situação sugerida na pergunta haverá ainda lugar para o biológico? Acho que sim. Acredito no corpo. Poderemos ter vantagens do ponto de vista da vida cotidiana, mas teremos de correr nas ruas para manter nossos corpos funcionando, pois nos faltarão exercícios físicos. O que faremos? Haverá diferenças entre níveis de cultura. Sempre existirão grandes criadores. A máquina é um instrumento de criação de objetos tridimensionais e de criação mental. O smartphone, esse aparelhinho que nos escraviza, permite a qualquer menino rivalizar com as grandes emissoras de televisão e criar aplicativos inimagináveis para nós que somos velhos demais para isso.
Caminhamos para uma democracia total ou para uma datacracia?
Rumamos para uma datacracia. Isso vai nos livrar até mesmo dos políticos. Numa cultura de transparência tecnológica os políticos não poderão mais usufruir dos benefícios da opacidade que lhes tem permitido agir como têm agido até agora. A nação será administrada automaticamente. Durante algum tempo ainda faremos as leis. Depois, veremos. Será que as máquinas tomarão nosso lugar? Kurzweil, outro grande profeta do nosso tempo, pretende que a singularidade acontecerá por volta de 2050, ou seja, nessa época aproximadamente seremos superados pelas máquinas.
Por que ele chamou isso de singularidade?
Já pensei muito nisso. Nunca encontrei a resposta. Parece que isso vem da física. Já fomos vencidos muitas vezes pelas máquinas e continuamos firmes aqui. As máquinas não deixarão de ser máquinas. Pediram-me para escrever um texto sobre o dia em que teria de apertar a mão de um robô. Tentei apertar a mão daquele horrível robozinho idiota produzido pelosSim franceses. Em “Black Mirror” tem um momento muito interessante: um homem recém-casado morre num acidente. A sua mulher recebe um pacote com um corpo, que em tudo lembra o do seu marido. Ele é programado pela inteligência artificial com elementos do homem morto. Apesar de apaixonada e saudosa a mulher acaba por se livrar do presente. Ele não pode aceitar uma máquina.
Ainda há uma margem de liberdade para os humanos?
Sim. Sejamos um pouco ludistas, contra as máquinas. Como dizia McLuhan, o bom profesta só prevê o acontecido.
O capitalismo sempre sonhou em se livrar das leis trabalhistas. A uberização do mundo, graças aos aplicativos, realizará esse sonho?
Os aplicativos estão superados por blockchain. Uber funciona a partir de um centro que coordena serviços como aluguel de carros, cálculos, pagamentos, impostos. Uber é responsável pela organização de tudo isso. Blockchain é a declaração na internet de tudo o que eu faço. Tudo isso em rede e não mais a partir de um centro. Tudo pode ser negociado sem passar por um centro. Não há intervenção estatal nem de uma organização qualquer. Hoje, se quero utilizar a energia solar no Canadá, mesmo que eu acumule um excesso, só pode redistribuí-lo passando pela rede oficial. Blockchain é outra coisa.
Como diria Jean Baudrillard um desaparecimento por aceleração?
Sim, é a aceleração do sistema. A uberização é passagem do formal ao informal. É o fim do Estado. Ao menos teoricamente. O Brasil ficaria melhor sem Estado. Para que ainda precisamos de Estado? Para a defesa e para certos transportes. Tudo mais podemos entregar aos robôs. A datacracia levada ao extremo, o controle de tudo pelos dados, leva ao fim do político.
Em Singapura, exemplo de datacracia, ainda há um homem forte.
Sim, ele está lá. E ampliou o sistema de controle. Tudo funciona. Mas tudo é dominado pelo ditador. O mesmo se dá com Erdogan na Turquia. Parece que Rajoy, esse personagem pouco simpático, na Espanha, quer fazer algo semelhante. Tem a Coreia do Norte, tem muito soco na mesa. Emmanuel Macron, com a mudança da legislação trabalhista, também quer se impor sem discussão.
Vitoria do Estado mínimo capitalista ou paradoxalmente do comunismo, que sonhava com uma sociedade sem Estado?
Do capitalismo. As ideologias se autodestroem. Os comunistas se desacreditaram por seus atos. A legitimidade que a política precisa está hoje nas redes e nos algoritmos. A verdade está nas pesquisas de opinião. É um consenso técnico, não mais humano.
É o fim da história de Francis Fukuyama?
Não. Passamos do linear ao hipertextual. A narrativa linear da história explodiu. Entramos na contemporaneidade das redes. Um presente perpétuo. Não nos projetamos mais no futuro. Ampliamos o presente. Se falamos da história como evolução não podemos dizer que ela acabou. Estamos na etapa digital. A próxima será a etapa quântica. O digital estimula o racional e o lógico, a máquina. O quântico dá mil respostas a uma mesma questão. É espiritual.
A leitura do impresso vai resistir?
Se pararmos de ler no papel perdemos mais rapidamente nossa identidade. Na leitura do impresso o leitor é o senhor do movimento. E sempre se é obrigado a imaginar. O controle da linguagem é um hábito a ser adquirido que só se alcança por meio da leitura num suporte fixo. Não sendo assim, a linguagem se torna dominante e se apropria do imaginário do leitor. Se os pais querem que os seus filhos tenham uma identidade, precisam fazê-los ler.
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado em 02/12/2017