NÃO É CULPA DA INTERNET
Estive mergulhada nas últimas semanas nas profundezas das métricas da internet e em como de fato medir audiência online. O estudo é parte de uma disciplina do Master que faço aqui em Madri, em Mídias Digitais e Visuais. O professor, diretor do projeto MediaCloud, do MIT, nos EUA, tratou com pompa e circunstância a história recente da internet, desde a sua origem e as primeiras técnicas de medição até sua importância social e econômica nos dias de hoje. Nos explicou por que não tem conta no Facebook e não faz downloads de apps que pedem acesso às informações guardadas no celular. E deixou um elefante branco na sala – ou um nó no estômago – quando questionado sobre os desafios do mundo digital que vivemos hoje: não, não é culpa da internet!
A internet não nasceu na biblioteca de uma universidade americana para conectar pessoas. Ela também não nasceu como arma de guerra, para espionar os russos. Antes dela, a Arpa (sigla para Advance Research Projects Agency) foi na verdade a primeira rede operacional a conectar computadores militares e departamentos de pesquisa, em 1969. Seu objetivo era ser indestrutível. Paul Baran foi contratado para a missão de desenvolver tal sistema que pudesse manter a comunicação entre dois pontos, mesmo se o pior acontecesse. O medo era de um possível ataque nuclear, em plena Guerra Fria.
Logo depois, a Nasa usou o invento para lançar a Arpanet, provável mãe da internet. A Arpanet então se dividiu – parte continuou com fins militares e outra parte pública, rebatizada de internet e gerenciada pela Fundação Nacional de Ciência (NSF) dos EUA. Nos anos 1980, as redes todas passaram a respeitar um protocolo comum de transmissão, o famoso IP, e os primeiros computadores pessoais passaram a existir. Lá em casa, só chegou perto dos anos 1990, mesma época em que os EUA decidiram privatizar o invento e a internet como a conhecemos hoje, de fato, nasceu. Não há estudos claros explicando por que os americanos optaram pela privatização.
Se a mãe da internet foi a Arpanet, o pai é o físico Tim Berners-Lee, Antes dele, a internet era apenas a internet mesmo – e não a “rede mundial de computadores”. Em Genebra, trabalhando no Cern, um centro europeu de pesquisa nuclear, ele desenvolveu a primeira comunicação bem-sucedida entre um cliente HTTP (um protocolo que transfere hipertextos e, portanto, informação) e um servidor, usando a internet. Foi ele também o criador do primeiro “navegador”. Barners-Lee entregou o invento da web ao domínio público. Não tinha nem tem objetivos comerciais. Hoje, ele trabalha no MIT e continua, de certa maneira, supervisionando de longe o desenvolvimento da sua criação.
A NSF também tinha uma política clara para o uso da internet, que não permitia atividades comerciais. Mas, com a privatização e a velocidade de replicação do invento de Berners-Lee, tudo isso virou história. Os provedores de internet começaram a aparecer, dando àqueles computadores de casa a chance de se conectar à rede. Em 1994, nascia a Netscape, considerada uma das primeiras empresas da bolha da internet (Altavista e Yahoo vieram logo depois). Diferentemente da ideia de Berners-Lee, que criou um browser editável e aberto, a Netscape entregava um serviço fechado. Não se criaria nada, apenas se “receberia”, passivamente, via web. Tudo isso muito bem explorado comercialmente.
O Google só nasceria em 1998. A missão inicial de organizar a informação da internet passa longe do que o buscador se tornou hoje, quase 20 anos depois. No artigo The Anatomy of a Large-scale Hypertextual Web Search Engine, Larry Page e Sergey Brin apresentaram em 11 páginas o protótipo do Google, explicaram como ele funcionaria e, naquela época, criticaram outros buscadores com viés de uso comercial. Bem diferente do que existe hoje. Sua natureza comercial é inegável. E seu negócio claramente se sustenta no controle que tem dos passos (digitais) dos usuários e em nossas buscas.
A web 2.0, focada em participação e colaboração, ficou popular no início dos anos 2000. não se tratou de uma implementação técnica na rede, mas sim na maneira como as páginas passaram a ser desenhadas e usadas. Blogs se popularizaram e as redes sociais, enfim, nasceram. Fotolog em 2002, Delicious, Linkedin e MySpace em 2003, Orkut e Flicker em 2004, Twitter em 2006, Tumblr em 2007, WhatsApp em 2009, Instagram em 2010, Google+, Pinterest e Snapchat em 2011… Para lembrar apenas aquelas nas quais eu tive ou ainda tenho conta.
O Facebook também é de 2004, e nasceu com o objetivo simples de conectar estudantes universitários. A missão ambiciosa de “dar às pessoas o poder de compartilhar informações e fazer do mundo um lugar mais aberto e conectado” veio depois. E, assim como o Google, ele não veio ao mundo com os objetivos maléficos de colocar em risco a democratização da informação, espalhar fake news, espionar nossos passos, armazenas nossas memórias, nos isolar em comunidades e bolhas, controlar nossos desejos e impulsos e fazer ofertas de produtos e conteúdos baseadas nas nossas escolhas prévias ou nas escolhas dos amigos (ou nem tão amigos assim). Eles não foram criados para decidir arbitrariamente, com regras próprias e fora do nosso controle, o que devemos ler e assistir, como grandes editores daquilo a que devemos ou não ser expostos.
Mas tudo isso e muito mais acontece hoje. Aparentemente, nada estava nos planos das duas maiores empresas de tecnologia (e mídia) do mundo, este duopólio responsável hoje por quase metade do market share de publicidade e consumo digital global onde todos nós estamos mergulhados.
Agora que o jogo virou e tudo isso é sim uma assustadora verdade, de quem é culpa – e consequentemente a responsabilidade de manter o ambiente digital seguro, isento, livre e democrático?
Da internet, aquela criada por Berners-Lee para garantir que eu consiga me conectar e trocar informações com você, tenho certeza de que não é!
Fonte: ZeroHora/Sabrina Passos / Gerente de Produto digital e responsável pelo time de redes sociais (sabrina.passos@zerohora.com.br) em 25/06/2017