IA DESPLUGADA: INOVAÇÃO BRASILEIRA NA ESCASSEZ
Uma universidade pública do Nordeste mostra que a educação digital pode brilhar mesmo em contextos áridos
Em Xapuri, no Acre, a professora Marina segura um celular simples, um Samsung de 2018, com a tela levemente rachada. Ela fotografa a redação manuscrita de um de seus alunos. O clique da câmera é seco, quase tímido, mas carrega um peso enorme: aquele registro será enviado assim que o sinal de internet estiver estável no celular. Minutos depois, a inteligência artificial faz a leitura, analisa coerência, ortografia, estrutura e devolve um painel detalhado com sugestões para a professora e para cada aluno.
Essa cena quebra todos os estereótipos do que normalmente se imagina quando falamos de IA. Não há laboratórios futuristas, cabos de fibra ótica ou óculos de realidade aumentada. Há giz, um celular que dá sinais de cansaço, esforço físico e paciência coletiva. Ainda assim, há um futuro melhor sendo construído.
Inovação nasce da necessidade
Foi para realidades como a de Marina que pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas criaram o conceito de IA desplugada. A ideia é simples e potente: levar os benefícios da inteligência artificial para contextos onde não há internet estável ou computadores de ponta. Em vez de esperar que a infraestrutura chegue, a tecnologia é adaptada ao que já existe.
O resultado é que, em poucos anos, o aplicativo de correção de redações alcançou cerca de 500 mil estudantes em 1.500 municípios, com apoio de mais de 20 mil professores. Um impacto que ultrapassa a escala piloto e mostra que o Brasil pode ensinar ao mundo como inovar em cenários de escassez.
Exemplos que parecem impossíveis
Aprender sobre IA não se limita ao celular da professora Marina. A experiência se multiplica em práticas pedagógicas criativas que cabem em qualquer escola.
Num bairro periférico de São Paulo, alunos aprendem sobre o funcionamento de redes neurais com um baralho de cartas e barbantes coloridos. Cada criança representa um neurônio; quando recebe a carta com uma instrução simples (“se vermelho, passe à direita; se azul, à esquerda”), repassa a informação ao colega conectado pelo barbante. O grupo inteiro se transforma em um algoritmo vivo. Em 20 minutos de brincadeira, entendem o que levaria horas de explicação abstrata.
Em outra escola, professores usam papelão, giz e tampinhas de garrafa para simular fluxos de decisão de um sistema inteligente. O que parecia sucata, vira laboratório de lógica. A lógica do futuro sendo construída com os materiais disponíveis no presente.
E, claro, precisamos citar um marco institucional: a criação do Instituto IA.Edu e da primeira Cátedra UNESCO em IA Desplugada, sediada na UFAL. Um selo internacional que mostra que o mundo começa a prestar atenção nesse Brasil que inventa caminhos onde alguns só enxergam escassez.
Impacto real, vidas reais
Os números impressionam, mas é nas histórias pessoais que a força dessa inovação se revela. Uma avaliação de impacto com 100 mil estudantes mostrou que o uso de IA desplugada ajudou a reduzir desigualdades: em redação, a diferença de desempenho na escrita de meninos e meninas caiu de 30% para menos de 10%, e a diferença entre escolas urbanas e rurais diminuiu drasticamente.
O paradoxo é revelador: justamente as escolas mais pobres foram as que mais usaram a tecnologia. Onde a carência era absoluta, a demanda era maior, e a IA desplugada encontrou solo fértil.
O Brasil como referência
Enquanto o Norte Global debate ética da IA em conferências luxuosas, o Sul Global está ensinando inteligência artificial com giz, cartas e criatividade. Não se trata de celebrar a precariedade, mas de reconhecer que a inventividade brasileira criou pontes onde outros só viam abismos.
É por isso que o mundo não deve olhar apenas para o Vale do Silício. Talvez devesse olhar também para Maceió, onde uma universidade pública do Nordeste mostrou que a educação digital pode brilhar mesmo em contextos áridos.
O próximo desafio
A lição fundamental da IA desplugada é que o futuro da educação pode nascer da escassez transformada em pedagogia. Mas a série não termina aqui. Se até nas escolas sem internet a inteligência artificial pode gerar impacto, o que acontece quando temos tudo — internet, computadores e orçamento — e mesmo assim a IA falha? Quando o problema não é a conexão, mas a cabeça?
Essa será a reflexão da nossa próxima coluna: os limites pedagógicos da tecnologia.
NOTA: Esta coluna faz parte de uma série sobre o futuro da educação com inteligência artificial, baseada no livro O Professor Ampliado, que será lançado na Feira do Livro de Porto Alegre. A cada semana, compartilhamos reflexões de capítulos do livro, conectando pesquisas, exemplos e dilemas práticos.
*O livro O Professor Ampliado é uma co-autoria de Rafael Parente, Renato Brito e Maria Cristina Mesquita, uma publicação da Cátedra UNESCO da Universidade Católica de Brasília.
Fonte: Zero Hora/Rafael Parente em 07/10/2025