“Uma espécie de tirania silenciosa com trabalho 24 horas por dia”, alerta Dominique Wolton sobre empregos na era da internet
Sociólogo francês de 77 anos esteve em Porto Alegre no início de dezembro, quando recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela PUCRS
Sociólogo francês enxerga riscos nas formas como a tecnologia vem influenciando o modo como se trabalha.
Com 50 anos de produção acadêmica e 77 de vida, Dominique Wolton acompanhou uma série de transformações tecnológicas e suas implicações na política e na comunicação humanas. Nas últimas décadas, identificou movimentos que entende que dão agilidade ao trabalho, mas trazem uma aparente liberdade que, na verdade, padronizam e aprisionam os trabalhadores.
Em entrevista a Zero Hora no início do mês, quando esteve em Porto Alegre e recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), o sociólogo francês defendeu que é preciso estudar as divisões, organizações e condições de trabalho, para evitar o que entende ser uma “tirania silenciosa” que faz com que as pessoas trabalhem 24 horas por dia.
O senhor acompanha as mudanças tecnológicas e políticas e sua relação com a comunicação desde os anos 1970. Quais as principais transformações nesse período?
A evolução técnica favoreceu dois movimentos contraditórios. O primeiro é que cada um pode trabalhar sozinho, onde quiser, em qualquer lugar do mundo: é a individualização. E isso, de fato, é uma mudança extraordinária. O segundo movimento, mais discutível, é que existe uma economia de massa, onde tudo é padronizado e racionalizado. Do lado do capitalismo, os empresários ficam satisfeitos porque há racionalização, mas, do lado do trabalhador, isso resulta em uma padronização que empobrece.
Portanto, por um lado, temos a individualização das ferramentas, mas, por outro, uma massificação das transações econômicas e financeiras. Para mim, essa é a principal contradição: podemos trabalhar em qualquer lugar do mundo, mas tudo é organizado e estruturado com muito menos liberdade do que antes. Menos liberdade porque tudo está integrado em redes e sistemas organizados.
As pessoas acreditam que isso é um avanço, mas eu penso que não é avanço nenhum. Há uma contradição entre a individualização do trabalho e, ao mesmo tempo, a existência de empresas globais que promovem uma massificação em todas as áreas. Isso resulta em uma perda da individualização. Essa é uma mudança que as pessoas não percebem. É uma pena, porque acredito que estamos perdendo o individualismo, que está desaparecendo em favor de uma massificação ou padronização.
De que forma esse movimento se manifesta mais?
Na verdade, é uma nova forma de divisão do trabalho. Isso se manifesta no Brasil, assim como em outros lugares. É como dizer: fique em casa, trabalhe em coworking, seja mais livre. Mas, na verdade, isso não é verdade; é liberdade dentro de um quadrado.
E, como se pode fazer muitas coisas dentro desse quadrado, não percebemos que esse quadrado é, na verdade, uma prisão. Portanto, há um verdadeiro problema de empobrecimento da iniciativa individual. Isso é verdade porque o trabalho está entrando em uma nova etapa de taylorismo. É isso: uma nova divisão do trabalho, portanto, uma nova guerra. Eu acho que, no começo, todo mundo acha isso maravilhoso, mas, depois, virá a decepção.
É uma falsa liberdade. É mais rápido, mas é mais padronizado. Então, há um verdadeiro problema: perdemos em liberdade o que ganhamos em eficiência. Mas é uma eficiência que, na verdade, reflete algo: nas relações entre técnica e trabalho, é a técnica que vence. Dizem que é maravilhoso, que é mais rápido. Sim, mas... O ser humano perdeu. Ele não está tão forte.
Quais as especificidades no Brasil nessa transformação, na comparação com outros países?
Há apenas uma especificidade, que é haver menos indústria do que em outros países. Há muita agricultura. Mas a tendência é a mesma. E a tragédia é que sempre que apresentamos a individualização do trabalho como algo que traz mais liberdade, não explicamos que essa individualização se faz dentro de um contexto de racionalização. E essa é a verdadeira tragédia do capitalismo.
Confundimos as ferramentas que permitem a divisão do trabalho com as ferramentas que permitem uma revolução do trabalho. E isso não está certo. O homem precisa ser capaz de inventar, então, não temos necessidade disso. Existe uma perda total de autonomia. Acho que tudo o que está acontecendo, chamado de racionalização do trabalho pela tecnologia, na verdade é uma perda de autonomia. Porque todos estão, digamos, separados pelo computador. Todos se acham mais livres, mas para ele todos são, na verdade, dependentes.
Com a internet e avanços tecnológicos com a inteligência artificial, o que mudou na comunicação?
Com os computadores e, hoje, com a internet, houve um progresso técnico. Isto significa que muito mais operações podem ser processadas em muito menos tempo. Isto quer dizer que, em última análise, um trabalhador pode fazer mais coisas na mesma unidade de tempo. A falsa narrativa consiste em dizer que isso gera liberdade no trabalho: fazemos o que queremos, podemos trabalhar às 3h da manhã, às 5h da tarde. Sim, mas, na realidade, o trabalho é muito padronizado, o controle é muito mais forte do que antes e é menos interessante.
Portanto, há uma batalha entre a simplificação do trabalho com a tecnologia e o fato de que os homens, os seres humanos, sonham com um trabalho mais rico, mais pessoal, com mais inovação. E, atualmente, há uma guerra cultural entre o que diz o GAFAM (gigantes de tecnologia), Google, Apple, Amazon e tudo mais, de que quanto mais redes houver, quanto mais teletrabalho, mais videoconferência, melhor é, porque as pessoas não precisam mais sair de casa, e o que os trabalhadores dizem: “não, eu quero ir à empresa, quero ir à fábrica, quero poder organizar o meu trabalho da forma que eu quero, não é um avanço ter que trabalhar 24 horas por dia”.
Essa é a alienação. E eu percebo que os trabalhadores têm razão ao dizer isso, porque as empresas confundem o progresso tecnológico com o progresso do trabalho humano. Não é porque alguém pode trabalhar a qualquer hora da noite que isso é um avanço humano. O ser humano tem necessidade de dormir, de ficar com os seus filhos, de sair etc. Então, há uma espécie de mentira sobre a confusão entre as mudanças tecnológicas que permitem produzir muitas informações rapidamente e a tese de que isso seria um progresso humano.
É como quando nós trabalhávamos em linhas de montagem, um século atrás, para fabricar automóveis, com Taylor e Ford. Se dizia que aquilo era formidável, porque faríamos muito mais carros do que antes, e é verdade, se fazia muito mais carros. Mas o trabalho em linha de produção, a divisão do trabalho era 10 vezes pior. Então, foram os operários que perderam, e os trabalhadores. É o mesmo desafio hoje, mesmo que as técnicas não sejam as mesmas.
A questão mais complicada é: qual é o trabalho humano e qual é a felicidade no trabalho humano? Hoje, há uma mentira, como em 1900. Nós fazemos a confusão entre o progresso técnico que existe, por se fazer mais rápido o mesmo trabalho, com aquilo que seria um progresso humano.
O que o senhor considera como progresso humano?
Fazer mais rápido a mesma coisa não é um progresso humano. Um progresso humano é quando as pessoas decidem o que querem fazer juntas, como vão dividir e organizar o trabalho, como serão feitas tarefas diferentes. Aí, há um trabalho de colaboração.
Mas não é isso que está sendo demandado. São os engenheiros consultores que chegam, os engenheiros informáticos, e dizem “pronto, tem que fazer isto, tem que fazer aquilo, às 11h da noite, às 2h da manhã”. Não! Essa é a dominação técnica. E a batalha no futuro, sobre a internet, será essa. Eu faço o que eu quero a partir da vontade dos trabalhadores, entre nós, ou eu estarei preso à tirania da pseudoliberdade. E esse é um verdadeiro problema.
Será um conflito muito grande no mundo, porque haverá centenas de milhões de trabalhadores que não vão mais querer isso. Por enquanto, todo mundo está fingindo. Jogamos com a confusão entre a inovação de uma ferramenta e a inovação do trabalho.
O progresso técnico não significa o progresso do trabalho. Se queremos o progresso no trabalho, é preciso trabalhar sobre a divisão do trabalho, sobre a organização do trabalho, sobre as condições do trabalho, sobre as propostas dos próprios trabalhadores, sobre as negociações entre as direções. Isso leva tempo, mas, pelo menos, depois haverá um trabalho eficiente. Haverá felicidade no trabalho.
Se não, será uma espécie de tirania silenciosa com trabalho 24 horas por dia. Não é progresso dizer a alguém “se você tem um computador em casa, pode trabalhar quando quiser, 24 horas por dia”. Isso não é progresso. Isso é alienação.
Como essa mudança afeta o jornalismo e a educação?
Os jornalistas são os primeiros afetados. Vai se dizer que não há necessidade de jornalistas, porque todo mundo tem todas as informações por conta própria. Então, cada um vai se tornar um jornalista, o que é estúpido. Não se pode ser jornalista, é uma ocupação diferente.
Aos professores se dirá que não vale a pena dar aulas o tempo todo, que basta fazer videoconferências. Cada um fica na sua casa e não teremos mais do que 10% do curso juntos. E todas as atividades serão assim. Nós iremos "dessocializar" os indivíduos e vamos remetê-los aos parques tecnológicos. E vamos chamar esses parques de socialização. É uma mentira.
(A socialização) é fundamental aos jornalistas, porque um jornalista precisa investigar, ver, fazer entrevistas. E é fundamental para o professor, porque um aluno só vai aprender se ele gostar do seu professor, se ele admirá-lo. E ter um computador onde tudo acontece vai seduzir por cinco anos, talvez 10 anos. E deu.
É uma grande mentira. Mas os professores estão sozinhos, eles lutam contra isso. Por enquanto, o poder tecnológico das GAFAM é terrível. É necessário que os poderes políticos resistam. Esta é a verdadeira batalha dos próximos 20 anos.
Mercosul e União Europeia anunciaram um acordo de livre comércio após 25 anos de negociações. De que forma o senhor acha que isso pode incrementar a comunicação entre os dois blocos?
Isso não vai melhorar a comunicação entre os dois blocos. No início, eu acho que se dará sequência. Foi assinado. Mas há divergências na Europa contra o Mercosul. É uma competição global. Eu acho que é um perigo. Mesmo que brasileiros estejam muito felizes, isso não é tão bom para eles. Tampouco é bom aos europeus.
Nós não teremos sucesso na agricultura mundial se ficarmos uns contra os outros. É preciso encontrar soluções, e a solução é desenvolver uma agricultura que seja muito mais ecológica. E sobre a ecologia da agricultura, a Europa está, evidentemente, à frente em relação à América, tanto do Norte quanto do Sul.
Mas, o problema é que os desafios geopolíticos são tão enormes que dizemos “ah, são os europeus que estão atrasados". Isso significa que o paradoxo é que os países do Sul passaram a fazer uma chantagem na modernidade que os Estados Unidos costumavam fazer antigamente com o resto do mundo. Ou seja: o grande Sul diz “olha, nós somos capazes de fazer uma agricultura melhor, mais barata, etc.", quando isso não é verdade. Como resultado, há conflito entre a Europa e o Sul. Isso é o verdadeiro problema, porque acabaremos tendo conflitos entre países do Norte e do Sul, e isso é um erro.
Seria necessário refazer toda a negociação do Mercosul, mas é necessário que ela seja relativamente equilibrada. Eu não estou dizendo que as pessoas da Europa são uns anjos, de forma alguma. Elas defendem seus interesses. Mas eu não acredito na ideia simplista de pessoas do Sul que dizem “ah, mas para nós isso é formidável”. Alguém está perdendo. É preciso renegociar, o que é terrível no mundo da comunicação, no qual todo mundo vê tudo. Somos obrigados a fazer negociações. Honestas.
Se a comunicação envolve compartilhar, negociar e conviver, como é possível se comunicar em uma realidade de polarização e bolhas sociais?
É uma questão muito boa. Se queremos uma boa comunicação e uma boa negociação, isso leva tempo. E o capitalismo detesta o tempo: ele quer velocidade para especulação. Então, essas novas tecnologias ou essas novas organizações de trabalho, se queremos que sejam satisfatórias para todos, é necessário que haja tempo para negociar. E o patronato diz “não, não, não temos tempo, não temos tempo”.
Então essa é a batalha. Aproveitamos para concordar ou dizemos que está tudo ótimo, você verá e começaremos. E o Mercosul é a mesma coisa. As negociações demoraram muito, tudo deveria ter sido interrompido e reiniciado. Não estou dizendo que a Europa esteja certa, mas ainda está certa sobre a experiência que tem com pesticidas e tudo mais.
Como evitar que essa segmentação da sociedade aumente? Ou, se não for possível evitar, como lidar com ela?
Como hipótese, eu posso estar enganado, mas penso que a questão da segmentação é a questão mais grave, politicamente, do século XXI. Porque, com os recursos tecnológicos, com o modo de vida, tudo caminha para a singularização e a segmentação. E todo mundo acha que isso é formidável.
Eu acredito que a ameaça de uma sociedade é o fim do coletivo, é a segmentação. Então, acho que a principal ameaça que temos nos países ricos – e que não há nos países pobres, porque nos países pobres há uma solidariedade familiar, há uma solidariedade agrícola – é a segmentação das sociedades, na qual todos adoecem nas suas interações.
Eu li uma frase há 30 anos que eu repito o tempo todo, porque ela chama a atenção para a solidão das pessoas interativas. Todo mundo está sozinho, mas existe a interatividade. Então, precisamos reconstruir o coletivo. E a segmentação é a mesma coisa que uma comunidade, mas isso não é a sociedade. A sociedade é a mistura de todo mundo e a invenção da política para se criar uma forma de coabitar. A comunidade, ou a segmentação, é cada um no seu quadrado. É a solidão.
E lá, nessa batalha da solidão interativa das comunidades, todos os países do mundo podem lutar. Os países do Norte, os países do Sul e companhia. Talvez fosse interessante de analisar se os países do Sul não teriam uma espécie de vantagem na reflexão sobre esses problemas, porque, no Norte, estamos um pouco cansados de tudo isso. Mas é uma ótima pergunta.
Fonte: 27/12/2024 / Zero Hora / Isabella Sander