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Madame Bovary: de Flaubert por Lea Masina
Madame Bovary: de Flaubert por Lea Masina

MADAME BOVARY, DE FLAUBERT.

 

A permanência do romance MADAME BOVARY nas bibliotecas atuais comprova o fato de que algumas obras literárias impõem-se ao tempo pela qualidade artística.  A história da mulher que enfrenta o mundo masculino para ultrapassar suas contingências sociais e de sexo não perde a atualidade.  É admirável o modo como Emma procede para satisfazer seus anseios: ela mente, trapaceia, rouba, trai o marido, deixa-se humilhar, despreza ou adula pessoas para ampliar seu espaço na sociedade estratificada do interior da França no século XIX.  Emma luta contra a estreiteza do ser que lhe coube.

 

Se o leitor de hoje tiver alguma curiosidade pelo romance, poderá deliciar-se com pequenas emoções, paixões, audácias, sentimentos, perdas, desvalimentos e mesmo tragédias que se repetem e se repetirão sempre no dia a dia das pessoas comuns.  Encontrará também nas personagens a representação literária de temperamentos e singularidades que somente um grande escritor é capaz de expressar através da linguagem e assim criar um mundo novo de múltiplas vozes e múltiplas visões.

  

Artista da palavra, sua concepção de enredo, linguagem, tempo social e personagens transcende à época.  Flaubert inovou o romance romântico e criou um realismo próprio ao narrar, com objetividade fotográfica, o que se vê de fora e também o que se passa com as personagens em ações e circunstâncias múltiplas.  Ele examina os sentimentos no amplo espectro que vai do ridículo e do medíocre ao desespero, à paixão e ao confronto com a morte.  Suas personagens não são idealizadas, mas seres capazes de egoísmos, ultrajes, infâmias, amores e desprendimentos.  O escritor assume um ponto de vista narrativo neutro, sem intrometer-se no relato.  De modo competente, ele desvela o interior das personagens sem apelar para o intimismo confessional ou o sentimentalismo fácil.  Flaubert compõe personagens e cenas por oposição, obrigando o leitor a investir competência, discernimento intelectual e sensibilidade para que a arte do texto alcance sua finalidade estética.  Ao adentrar o ambiente rarefeito das cidades provincianas francesas, como Yonville, Toestes e mesmo Rouen, o leitor apreende, pela metáfora, o repúdio de Emma à estreiteza e à mediocridade, justificando seu desejo de transcendência.  Além da hábil descrição da vida no interior da França novecentista, o livro é um exemplo impecável do estilo narrativo realista, primando pela exatidão das palavras:  “le juste mot”.

  

Sem dúvida, MADAME BOVARY deve ser lido por sua capacidade de emocionar e atrair.  O que muda ao longo do tempo são as leituras críticas que dele são feiras e o modo como os leitores o apreciam.  O sucesso inicial do romance decorreu do escândalo provocado pelo processo movido contra o escritor por abordar, no livro, um caso de adultério.  A defesa de Flaubert, ironicamente genial, fundamentou-se no castigo doloroso de Emma, que morre de modo lento e sofrido após a ingestão de arsênico.  Acredito que a permanência do romance nas bibliotecas dos leitores de hoje deva-se à qualidade da linguagem e à capacidade de expressão do desejo, o impulso de mudança, o amor passional e a luta corajosa de Emma pelo espaço ilimitado, mesmo quando resulta em fracasso pessoal.

  

Mário Vargas Llosa, no livro ORGIA PERPÉTUA, resgata, em um primeiro momento, a personificação de Emma e a paixão que nele despertou quando a conheceu em noites solitárias vividas em um quarto de estudante, em Paris.  Deslumbrado com a mulher que agia movida pelo desejo, Vargas Llosa reconhece que  “o sexo está na base de tudo o que acontece; é, juntamente com o dinheiro, a chave dos conflitos e a vida sexual e a econômica confundem-se em uma trama tão íntima que não se pode entender uma sem a outra.”

 

Flaubert explora à perfeição a verossimilhança narrativa, mantendo a coerência do texto, e sempre atento à verossimilhança externa:  Emma Bovary tenta sobreviver em um mundo masculino mediante estratégias femininas.  Charles, o marido simplório; León, o namorado romântico e frágil; Rodolphe, o amante aristocrata e volúvel são os instrumentos que lhe parecem acessíveis para ingressar em um mundo cujo centro ela descobre no baile do Marquês de D’Andervillier.  Enquanto dança com a nobreza provinciana, ela vê os rostos desfigurados dos camponeses através dos vitrais da sala.  A lembrança de sua origem marca a tomada de consciência da personagem que, a partir de então, inicia a busca do sonho inatingível, resumindo em beleza, riqueza e paixão.  Sua vida se transforma, ela mente, trai, rouba, endivida-se, abandona a filha, trapaceia, avilta-se e, desiludida e infeliz, se mata.  A moral francesa em débâcle.  Flaubert sabe que a literatura é arte e busca a exatidão da linguagem.  A dimensão dos sonhos de Emma, indiciada pelas imagens de mar, barco, conchas marinhas, tem sua representação mais expressiva de espaço infinito em Paris, a capital do mundo no século XIX.  Todo o percurso da heroína pode ser lido como o grito de um afogado, a necessidade de ar para viver:  ela ansiava por amor feito uma carpa pelo ar quando deixada sobre a mesa da cozinha, diz Rodolphe Boulanger.

  

No romance, além das personagens inesquecíveis, como o farmacêutico Hommais, Hypolitte, o pequeno Justin, as burguesas e as criadas, destacam-se cenas antológicas, como a de Charles na escola, o boné lançado de mão em mão, “ridiculus sum”; o casamento na granja dos Rouault; o capítulo dos comícios agrícolas; a famosa cena da carruagem, com Emma e Léon a dar voltas em torno da catedral de Rouen; o desespero de Emma que não consegue auxílio financeiro para pagar o agiota Lhereux e, assim, evitar a humilhação e o ultraje.  E a descrição final, quase naturalista, de sua morte.

 

Flaubert avança quando prolonga o livro para além de Emma.  Ele examina as consequências da trajetória de sua heroína e descreve a solidão de Charles e a sorte da pequena Berthe.  O epílogo melancólico marca o início de novos tempos, mesmo acentuando o ranço moralista que os advogados do escritor bem aproveitaram quando do famoso processo.

 

Fonte:  Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Lea Masina (Professora de Literatura, doutora em Literatura Comparada e Crítica Literária) em 31 de outubro de 2015.