TRÊFEGO E PERALTA, DE RUY CASTRO
DE UM OUTRO TEMPO
Ruy Castro passou os últimos 50 anos escrevendo, escrevendo, escrevendo. Foram milhares de textos para a imprensa, além de livros como CHEGA DE SAUDADE (1990), que conta a história da bossa nova, e as biografias de Nelson Rodrigues (1992 e de Garrincha (1995). Cada um desses, por exemplo, vendeu cerca de 100 mil cópias e continua em catálogo, assim como outros 16 títulos.
Marcando esse meio século bem-sucedido, Castro lança TRÊFEGO E PERALDA – 50 TEXTOS DELICIOSAMENTE INCORRETOS (Companhia das Letras). É uma amostra mínima em relação à produção total, mas que deixa claro que o jornalista sempre gostou de nadar contra a maré moralizante que avassala o planeta.
Publicados originalmente hoje, alguns textos do novo livro demandariam protestos de várias, digamos minorias. Tudo bem. Mas será que há remédio para segurar os exageros do politicamente correto? “No momento, não vejo solução, mas tenho esperanças de que, como outras manias, essa também passe logo. Isso vai acontecer principalmente quando algumas pessoas começarem a se levantar contra ela. Esse livro tem a ver com isso. Vou levar porradas, mas levaria de qualquer maneira. Sempre apanho.”
Castro sabe que já não se pode (ou não se deve) brincar com qualquer assunto. “Hoje, penso duas vezes antes de fazer uma brincadeira. Há muitas histórias que renderiam crônicas engraçadas, mas aí recuo, porque sei que não vou ser bem recebido”, conta.
Nem sempre foi assim. Sua crônica sobre um disco da Xuxa para crianças, em 1984, é um dos textos do novo livro que incomodaria muita gente se fosse publicado hoje (por mais que muitos concordassem intimamente co o enredo). Diz o textinho que, quando a atriz-cantora-apresentadora “invade o seu sonho e você suspira e geme o nome dela em voz alta (…), a patroa entende e perdoa. Claro, comparada à Xuxa, qualquer legítima esposa sabe que já começa perdendo de 5 a 0. nem adianta tentar empatar”.
Difícil ler um comentário tão venenoso, ainda que estejamos falando da Xuxa de 1984, quando ela namorada o Pelé e estava no início de sua carreira. Castro publicaria algo assim hoje? “Seria complicado”, conta ele, sem detalhes.
Todos os 50 textos podem provocar algum incômodo, de acordo com a sensibilidade do leitor. A entrevista com o jornalista Ibrahim Sued, feita em 1981, por exemplo, despertaria comentários raivosos contra a imprensa, contra a elite festeira do Rio de Janeiro das décadas de 1950, 1960 e 1970, e contra o próprio colunista. No caso dele, indiscrição pouca é bobagem.
Já Millôr Fernandes, em 1983, dizia que “queria ver uma mulher escrever contra a aposentadoria aos 25 anos de serviço – o que é uma sacanagem, que não há nada que justifique”. Prato cheio para reações hoje e sempre.
Castro acredita que, na briga pela instituição do discurso politicamente correto, certos grupos acabam criando divisões internas, enfraquecendo seus argumentos. “Essas contradições tornam até difícil manter certas posições. Acontece com as feministas e com outros grupos. E isso não é de hoje. Nos anos 1990, houve, na Inglaterra, um movimento para que atores negros interpretassem papéis de personagens brancos. Assim foi. Depois de minutos em cena, não havia qualquer estranhamento. Mas os atores brancos, ainda hoje, não podem interpretar personagens negros, que os protestos logo aparecem. Não é contraditório?”
Castro escolheu ser jornalista “quando tinha oito anos de idade” e abraçou o ofício aos 19 anos, como estagiário no Correio da Manhã. Naquela época, enquanto os veteranos tratavam de fechar a edição do jornal, ele tinha tempo para fazer amizades com figuras que costumavam visitar a redação em horas inconvenientes. Era o caso de Nelson Cavaquinho e Ismael Silva, dois mestres da música carioca.
“Eu sempre descia com eles para o boteco. Eles bebiam conhaque, eu bebia Crush… Até que parei com a Crush e pedi uma cerveja”, relembra Castro, que, tempos depois, mergulhou fundo no álcool e, depois de superar muitos problemas, tornou-se abstêmio em 1988.
Hoje, ele está livre de duas “cachaças”: a bebida propriamente dita e as redações de jornais, que deixou de frequentar em 1986, quando passou a viver de textos sob encomenda e, claro, de seus livros. Não por acaso, escrevê-los tornou-se sua cachaça – ou paixão, o que dá quase no mesmo. Só que Castro vive interrompendo-os para embriagar-se com novos temas.
Há anos, por exemplo, ele rascunha um manual sobre a produção de biografias. Suspendeu-o quando surgiu a ideia de um romance – que engavetou para escrever sobre o Rio de Janeiro da década de 1920.
Tem se ocupado muito com esse projeto, mas nada garante que não seja deixado de lado, tão logo uma nova paixão empurre para escanteio a paixão anterior, pois é assim que elas costumam fazer, como sabe Castro – o que pode até parecer politicamente incorreto, mas é uma verdade. E é isso que importa.
Fonte: Jornal do Comércio/Caderno Panorama em 21/12/2017