UM MERGULHO NA ESCURIDÃO
EM NOVO LIVRO, MARIA CARPI PROPÕE REFLEXÕES SOBRE O OLHAR EVOCANDO A IMAGEM DE UM CEGO.
LIVRO: O CEGO E A NATUREZA MORTA // POESIA // ARDOTEMPO, 144 PÁGINAS.
Maria Carpi não tem pressa. Apresar de se considerar poeta desde a infância, só lançou o primeiro livro, NOS GERAIS DA DOR (1990), aos 51 anos. De lá para cá, já publicou mais de 12 títulos, mas guarda outros 23 na gaveta, sem urgência de editá-los. Essa conta, no entanto, mudou em 30 de agosto, com o lançamento de O CEGO E A NATUREZA MORTA, na Livraria Cultura. Na ocasião, houve bate-papo da autora com o psicanalista Luiz-Olyntho Telles da Silva, autor do prefácio.
- Não sou parâmetro para ninguém. Cada poeta precisa encontrar sua própria respiração no mundo. Tenho um filho que é o contrário de mim e amo que sejamos diferentes um do outro. Ele tem pressa, urgência; já eu sou apaixonada pela lentidão e pelo silêncio – diz, comparando seu modo de escrever ao do filho, o também poeta Fabrício Carpinejar.
Assim, como os livros anteriores de Maria Carpi, O CEGO E A NATUREZA MORTA é construído em torno de um tema único. Desta vez, a metáfora do olhar é o ponto de partida para os poemas, agrupados em três cantos. No primeiro terço, AS BRASAS DA ESCURIDÃO para indicar a possibilidade de desenvolver uma nova sensibilidade. “O cego sabe lidar com o escuro / Empurra-o como se água / na banheira, moldável”, diz o eu lírico, “com o tato dobra / e desdobra as nuanças do sabor / e da alegria”.
No canto seguinte, NOITE EM CLARO, um mergulho na escuridão é proposto ao leitor. Como o título da seção sugere, a noite dos versos também tem seu próprio tipo de claridade, uma vez que “não há maior imaginação / do que ingressar em sombras”. Já os poemas do último trecho, AUSÊNCIA ARDENTE E FALA FEMININA, refletem sobre a convivência com o caráter insaciável dos desejos. “Ninguém se livra / mesmo casando, da viuvez da vida”, conclui um dos poemas.
- Esse livro me persegue há quase uma década, mas foi há cinco anos que o orquestrei. Contudo, fui escrevendo e publicando outras coisas. Fiquei com receio de fazer esses versos encontrarem leitor, pois é um livro muito dendo, forte – comenta a autora.
Leitora apaixonada de ilósofos como Martin Buber (1878 – 1965), Simone Weil (1909 – 1943) e María Zambrano (1904 – 1991), Maria Carpi ampara as reflexões que geram seus versos na filosofia. Assim como a autora em seu fazer poético, o leitor também precisa de atenção e tempo para meditar sobre as metáforas e os paradoxos sugeridos pelos poemas, abertos a diferentes interpretações, bem como para fruir a delicada musicalidade com que foram estruturados. É um livro para ser absorvido aos poucos. Sem pressa.
SOBRE A AUTORA
Maria Carpi nasceu em Guaporé e vive em Porto Alegre desde os 15 anos. Publicou 14 livros, entre os quais DESIDERIUM DESIDERAVI e A MIGALA E A FOME. Venceu o Prêmio APCA (por NOS GERAIS DA DOR) e o Açorianos (por OS CANTARES DA SEMENTE), além de ter sido finalista do jabuti e ganho menção honrosa no Casa de las Américas. Tem 77 anos. É professora e defensora pública.
TRECHO
A visão do cego é de um repuxo solar. A sonolência da água na boca vem buscar o olho em seu poço.
Na claridade do dia, vê não vendo, mas, à noite, em silêncio de cores e ícones, adivinha.
A bela não está entre grades. Adivinha-a, doce, intercalada pelas cordas da harpa. Entre acordes e linhas de luz e sombra que se cruzam e descruzam.
Sopro dedilhado em canora árvore. E a suave harpa, aprisco de aves, ressoa as catacumbas.
Poema 27 do canto “As brasas da escuridão”, primeira das três partes nas quais “O cego e a natureza morta” está dividido.
Fonte: Zero Hora/Alexandre Lucchese (alexandre.lucchese@zerohora.com.br) em 30/8/2016.