UMA BIBLIOTECA DE LIVROS SOBRE LIVROS
Jornalista lança obra sobre desafios na vida dos leitores e sobre bastidores da vida dos escritores
Livro: A BIBLIOTECA NO FIM DO TÚNEL: UM LEITOR EM SEU TEMPO — De Rodrigo Casarin. Arquipélago Editorial, 208 páginas
A biblioteca chinesa de Dunhuang, localizada para os lados da fronteira com a Mongólia, fascina seu passado. Ela foi lacrada no século 11 e passou mais de 900 anos intocada, preservada no meio de uma caverna. Foi apenas no século 20 que um monge redescobriu o acervo repleto de manuscritos e algumas xilogravuras com preciosos registros da época em que foram escritos. Uma biblioteca, também um tesouro com mais de mil anos de história.
Já a biblioteca da misteriosa ilha de Akaito, perdida no Mar do Japão, chama a atenção por uma peculiaridade: todos os livros de seu acervo são duplicados. Os exemplares ficam em estantes diferentes e são atados por um fio. O chão do lugar está sempre coberto por cordões coloridos. A lei local estipula: quando dois leitores pegam um mesmo título ao mesmo tempo, coincidência denunciada pelo elo, são obrigados a se casar. Não é por acaso: raramente alguém se divorcia em Akaito.
"Toda biblioteca é, em certo sentido, imaginária. O espaço físico de madeira, pedra, metal e vidro, os livros arranjados nas prateleiras e os próprios leitores não refletem a realidade de uma biblioteca, que reside nos conteúdos de suas páginas e, portanto, na mente dos leitores." É o que escreve o argentino Alberto Manguel, um dos grandes bibliógrafos da atualidade, camarada que já cuidou de importantes acervos e foi parceiro de leituras de Jorge Luis Borges.
Manguel talvez seja a maior referência viva quando o assunto é livros sobre livros. Registrou história de leitores espalhados por diferentes lugares do tempo e do espaço em UMA HISTÓRIA DA LEITURA (Companhia das Letras, tradução de Pedro Maia Soares). Contou histórias íntimas e de acervos arruinados em BIBLIOTECA À NOITE (também da Companhia, tradução de Samuel Titan Jr.). Em NOTAS PARA UMA DEFINIÇÃO DO LEITOR IDEAL (Edições Sesc, tradução de Rubia Goldoni e Sérgio Molina), cravou que Pinochet, tosco e sanguinário, foi o leitor ideal de DOM QUIXOTE – tinha medo do texto de Cervantes, por isso o proibiu.
É ainda de outro trabalho que pesco as aspas de Manguel. Ele assina a apresentação de AS BIBLIOTECAS FANTÁSTICAS, que José Roberto Torero acaba de republicar pela Padaria dos Livros. Ilustrado por Eloar Guazzelli, trata-se de uma vasta coleção de bibliotecas imaginadas pelo autor. Tanto a biblioteca de Dunhuang quanto a de Akaito aparecem no volume — e, adianto, uma delas existe para além da imaginação.
A obra de Manguel é uma espécie de irmã mais velha, enquanto o livro de Torero faz as vezes de irmão novíssimo de A BIBLIOTECA NO FIM DO TÚNEL: UM LEITOR EM SEU TEMPO, que acabo de publicar pela Arquipélago. Pelas páginas, estão enrascadas caras a qualquer leitor. Quando dar um pé na bunda de um livro enfadonho? O que fazer quando não nos entendemos com um clássico? Como domar a biblioteca particular que não para de crescer e ameaça tomar conta da casa toda? O livro também mostra a literatura em atrito com a realidade e busca iluminar pontos do calabouço em que o Brasil se meteu nos últimos anos.
O trabalho traz o que encontramos pelas páginas de uma Carolina Maria de Jesus e de tantas outras referências valiosas da literatura brasileira e de outros cantos do mundo, mas não ignora o prazer que sentiram Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector ao escapar de um congresso na Colômbia para tomar drinks e papear sobre a vida num bar qualquer. A BIBLIOTECA NO FIM DO TÚNEL segue essa longa tradição de livros que se debruçam sobre os próprios livros, miram histórias de leitores, eternizam passagens diretamente ligadas à literatura ou ao universo literário.
Escrevi sobre Manguel e Torero. Poderia ter seguido muitos outros caminhos. Estão nessa estante gente como Irene Vallejo e o formidável O INFINITO EM UM JUNCO (Intrínseca, tradução de Ari Roitman e Paulina Watch), Miguel Sanches Neto e HERDANDO UMA BIBLIOTECA (Ateliê Editorial), Jorge Carrión e LIVRARIAS (Bazar do Tempo, tradução de Silvia Massimino Felix), Afonso Cruz e O VÍCI DOS LIVROS (Companhia das Letras de Portugal). Isso só para mencionar mais alguns colegas presentes, direta ou indiretamente, nessa minha própria biblioteca que agora chega aos leitores.
Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/Rodrigo Casarin/Jornalista especializado em literatura, editor da coluna Página Cinco em 01/10/2023