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2038 — A Instituição da Cleptocracia: Max Telesca
2038 — A Instituição da Cleptocracia: Max Telesca

UM PAÍS ATRAVÉS DO ESPELHO

 

Em 2038, seu romance de estreia, o advogado gaúcho Max Telesca oferece a chocante distopia de uma nação que tenta se encontrar e volta a se perder.

 

O ser humano, ensina Alex, narrador do romance “2038”, “se acostuma muito rápido ao absurdo”. “É uma característica, uma qualidade que o faz superar problemas radicais de forma eficaz. Da mesma maneira e, possivelmente, pelas mesmas razões que o olfato amolda-se ao mau cheiro rapidamente, o instinto de sobrevivência determina a superação de situações bizarras, faz suplantar os rubores de face, e as mais estranhas políticas podem ser implantadas.” Não, Alex não está se referindo às atrocidades dos totalitarismos do século 20 nem ao domínio colonial europeu. Está falando de seu próprio país, Lisarb, uma potência que ingressou no rol das grandes nações após duas décadas de hegemonia do Partido Ético e Verdadeiro, o PEV. É inútil buscar por “Lisarb” na Wikipedia: o país nasceu da imaginação de Max Telesca, escritor que faz em 2038 sua estreia no romance. Ainda assim, não são necessárias mais do que algumas páginas para que o leitor brasileiro se sinta como se tivesse nascido lá.

 

Alex trabalha como assessor bem remunerado do governo central de Lisarb. Sua missão é redigir discursos sobre os feitos do PEV. Testemunha dos tempos heroicos do partido, ainda na oposição, o narrador tem a latitude necessária para discorrer sobre o que mudou na própria atitude e na dos companheiros: “Lembro-me das nossas antigas barbas cerradas, nossas roupas carcomidas, nossa relutância em usar gravata, nossas mulheres com os sovacos cabeludos, nossos filhos descalços, nossas rifas para as campanhas, nossos chinelos de dedo e, principalmente nossa raiva”. O PEV contemporâneo desmente o velho dito de que o diabo está nos detalhes – o que importa, nesse caso, é o contexto. A agremiação chegou ao poder por meio da eleição de um líder carismático, Lucas, por dois mandatos. Mas o que marcou sua preponderância foi o advento, em 2020, da chamada Grande Reforma – um conjunto de inovações políticas por meio das quais o partido cooptou para o governo seus antigos adversários conservadores na Grande Coalizão. A nova ordem baseava-se em políticas sociais voltadas para o incentivo ao consumo das classes D e E e, no plano jurídico e institucional, na regulamentação do que os lisarbenses chamam de approach.

 

Para o leitor pouco familiarizado com Lisarb, não é fácil compreender a mecânica do approach. Alex considera-o, porém, “uma das molas mestras da economia de Lisarb”, e se detém em descrevê-lo para melhor compreensão do que narra. Trata-se de uma prática nascida do que se conhece como lobby, escalonada em cinco níveis de influência três graus de comissão. “Muito elementar, sem contrato escrito, era um instrumento para ganhos adicionais”, relata Alex. O approach, como tudo em Lisarb, caracteriza-se, antes de mais nada, pela liberdade e pela sem-cerimônia: qualquer um pode praticá-lo. “Um vizinho precisando de um encanador pedia uma indicação para o síndico ou para o porteiro do prédio no qual morava, que era recompensado pelo profissional contratado com 10% do valor do serviço.” Mas – outra vez, em Lisarb, como tudo mais – a maneira como é praticado depende da posição de cada um na sociedade e, inclusive, de licença do Estado. Há cinco níveis e três graus de comissão no sistema. Os níveis 1 e 2 podem ser exercidos livremente – no plano dos negócios cotidianos, como o de pequenos serviços, e das operações comerciais de nível intermediário. A exigência de aval oficial se limita aos níveis 3, 4 e 5, correspondentes às esferas municipal, estadual e federal.

 

Vital para a implantação da Grande Reforma foi a chamada Doutrina da Aceitação, pela qual merece crédito o Líder Maior e Grande Companheiro, como é cognominado o supremo comandante do PEV. “Segundo Lucas, o ser humano deveria render-se à sua própria fraqueza, admiti-la de peito aberto e de cabeça erguida, acolhê-la como um filho que comete algum deslize e proporcionar-lhe o conforto do lar”, sintetiza Alex. Dado a metáforas, o chefe pevista não é um demagogo elementar – sua história mistura-se com a do país. “Lucas era o símbolo apaziguador do conflito interno latente e por vezes estridente”, resume o narrador. Sua mística ganha novo impulso com as políticas governamentais de transferência direta de renda. “Com o passar do tempo, o que era um programa destinado à salvaguarda da dignidade e essencialmente provisório, até a inserção econômico-social da pessoa, tornou-se permanente, formando um exército de eleitores pevistas que endeusavam Lucas, formando um amplíssimo e imbatível curral eleitoral.”

 

Alex não é um moralista, mas sua inteligência não lhe permite passar batido por incidentes que sugerem fissuras no dique oficial: o aparecimento do corpo de um advogado do partido junto a um pacote com um milhão de dólares, a decisão da namorada, Lisa, de trocar o PEV por um partido dissidente, o PLUNA, e deixar a Parte Murada de Lisarbia por uma casa na perigosa periferia.

 

Distopias políticas como a de 2038 não são inéditas na ficção brasileira. Romances como ZERO, de Ignácio de Loyola Brandão, e A INVASÃO, de José Antônio Severo, tiraram sua seiva bruta de um noticiário familiar ao leitor de sua época (os anos 1970). O que é notável no romance de Max Telesca é o fato de usar esse recurso para falar de um presente sobre o qual não pesa nem o arbítrio nem a censura, incontornáveis para os autores de quatro décadas atrás. Obra de arte que escapa ao moralismo raso e cheia de coragem e sofisticação narrativa, 2038 é tão fundamental para o debate brasileiro contemporâneo como seu primo distante 1984 o foi para o mundo da Guerra Fria. O Brasil de 2016 merecia um livro assim.

 

Fonte: ZeroHora/Luiz Antônio Araujo (luiz.araujo@zerohora.com.br) em 09/10/2016.