O RIO ENTRE O SIÃO E O SUDÃO
Em novo romance, Nei Lopes cria narrativa histórica cruzando as comunidades negra e judaica.
Mais conhecido do grande público por sua atuação como cantor e compositor de sambas sofisticados que oxigenam a tradição do gênero, o carioca Nei Lopes é também um escritor. Um autor que vem, ao longo das últimas décadas, alternando estudos de rigor documental precioso com ficções para crianças e adultos, vertentes da mesma obra dedicada a montar um rico panorama do negro na sociedade brasileira. O PRETO QUE FALAVA IÍDICHE, romance que está sendo lançado nesta semana em que se completam 130 anos da Abolição, é o mais recente exemplar desse projeto.
O PRETO QUE FALAVA IÍDICHE é um romance histórico que enfoca a biografia ficcional de Lindonor, o Nozinho da Gamboa, jovem mulato vivendo na primeira metade do século 20 no Rio, ainda Capital Federal. Órfão, inteligente e carismático, embora sem estudo formal, Nozinho cresce nas ruas do entorno da Praça Onze, marcada pela presença forte de duas comunidades à época marginalizadas, os negros da região que a brancaria chama pejorativamente de “Sudão” e a comunidade crescente de imigrantes judeus vindos do Leste Europeu.
Admitido à tutela de um jovem advogado, o narrador não nomeado do romance, Nozinho começa a trabalhar na fábrica de guarda-chuvas de Nathan Fridman, um dos negociantes israelitas do “Sião” da Praça Onze.
Nozinho e afilha do patrão, Raquel, se apaixonam, e os preconceitos e o moralismo do tempo separam o casal – com o escândalo, ela é mandada embora pelo pai, e Nozinho se dedica a procurá-la Brasil afora. Seja na Bahia, onde Raquel pode ter caído nas mãos da gangue judaica de proxenetas Zwi Migdal, seja em Porto Alegre, para onde pode ter sido enviada para morar com tios, no Bom Fim.
A certa altura, um personagem secundário, Zeca Patrocínio (filho de José do Patrocínio, o “Tigre da Abolição”) anuncia a intenção de montar uma “revista”, gênero de espetáculo em voga no período contando uma história muito parecida com a do casal infeliz, só que ambientada na Bahia: um pescador negro se apaixona pela filha do judeu dono de um armarinho, e define que a peça tem um “enredo bobo, mas dá margem a mostrar muita coisa bonita: o casario da cidade, as igrejas, o samba de roda a capoeira, as vendedoras de acarajé, as macumbas...” O trecho é uma piscadela bem-humorada de Nei Lopes declarando o objetivo de seu próprio livro. Pesquisador que já lançou mais de um dicionário sobre as relações entre Brasil e a África, Lopes usa o fio condutor de Nozinho e de seu amor malfadado como um pretexto tênue, muitas vezes deixado de lado para voar em diversas direções, montando um mosaico histórico das presenças negra e judaica na capital do período, bem como criando fios invisíveis entre essas comunidades e suas contrapartes em São Paulo, Salvador, Porto Alegre e até mesmo na Etiópia.
Fonte: Zero Hora/Mundo Livro/Carlos André Moreira (carlos.moreira@zerohora.com.br) em 11/05/2018