A ESCRITA COMO UMA SINFONIA
Antes da literatura, era ao violoncelo que Luiz Antonio de Assis Brasil dedicava sua vida. Em 1965, aos 20 anos, ingressou como instrumentista na Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA), onde permaneceu por uma década e meia – a estreia na literatura se deu apenas em 1976, com UM QUARTO DE LÉGUA EM QUADRO. É ao violoncelo que o escritor retorna agora, por meio da ficção, com o lançamento de seu novo romance, O INVERNO E DEPOIS.
A narrativa acompanha os passos de Julius, renomado violoncelista que se retira de sua casa, em São Paulo, para uma temporada isolado no interior do Rio Grande do Sul, com objetivo de estudar o Concerto para violoncelo e orquestra, de Antonín Dvorák (1841 – 1904), composição de difícil execução pela qual é obcecado. No entanto, de volta à estância Júpiter, na qual passou seus primeiros anos, Julius também irá rever seu passado, amores e conflitos – seus e os de sua família abastada, parte do “patriciado rural” rio-grandense.
O livro também representa uma raridade na carreira do autor: é ambientado nos dias de hoje. Praticamente contumaz do romance histórico, Assis Brasil quase sempre situou suas narrativas no passado remoto, distante décadas ou séculos. O HOMEM AMOROSO, uma curta e melancólica novela de 1986, era a única exceção – e ali o protagonista também era um violoncelista, mostrando que talvez a música seja o grande elo afetivo do escritor com seu tempo.
Autor acostumado a extensos panoramas históricos, ao voltar seu olhar para os dias de hoje Assis Brasil escolhe concentrar o “presente” da narrativa ao longo de umas poucas semanas – são os devaneios do personagem que fazem a história avançar pelo passado, reconstituindo a biografia ao mesmo tempo comum e contraditória de um homem dedicado às mais levadas artes do espírito, contando para isso com os fundos que recebe do arrendamento da estância na qual nunca voltou a pôr os pés – um parasitismo que não escapa ao autoexame do personagem.
ROMANCE ROMPE CICLO DEDICADO A VIAJANTES
Além da infância passada no interior gaúcho e interrompida por uma mudança súbita realizada por motivos misteriosos que vão se elucidando com o correr do romance, Julius também revisita na memória seus tempos de estudante de música em Würzburg, na Alemanha. Para ambientar a narrativa, o escritor fez visitas ao local.
- Quando músico da Ospa, acompanhei como é o ambiente musical, como tudo se processa, inclusive o ensino da música. Já a realidade de Würzburg, conheci bastante bem quando morei uma temporada em uma cidade próxima, por compromisso profissional e acadêmico, conversando com professores e estudantes. Mais tarde, voltei lá mais duas vezes para me certificar de certas coisas, já tendo em vista o romance – conta Assis Brasil.
O INVERNO E DEPOIS rompe um ciclo de romances dedicados a viajantes que estiveram ou se estabeleceram no Rio Grande do Sul, composto por O PINTOR DE RETRATOS (2001), A MARGEM IMÓVEL DO RIO (2003), MÚSICA PERDIDA (2006) e IGURA NA SOMBRA (2012). Mas o escritor observa que o livro ajuda a compor uma continuidade em seu trabalho:
- A questão que pauta O INVERNO E DEPOIS é a mesma que está nos outros livros que escrevi, que é a oposição do que é altamente civilizado, nesse caso uma escola de música alemã, com o nosso ambiente do Pampa, do Rio Grande do Sul. Diz-se que um escritor escreve a vida inteira o mesmo livro, só muda um pouco os temas. No fundo, as obsessões e neuroses são as mesmas.
TRECHO
“Formando frases mentais, começou. Primeiro: depois de quase dois anos de estudos na Escola, firmara o juízo de que estava numa das mais eminentes instituições de ensino musical do mundo, lugar, ainda assim, de muitos ex-futuros virtuosos, por conta da evasão de um número razoável de alunos, resultante do desespero ao descobrirem que havia um vazio gigantesco entre suas esperanças e a realização de uma carreira de sucesso. Esses coitados vegetavam por um tempo, entregues à depressão, assistindo na última fila os recitais de seus colegas e, de um dia para o outro, pegavam o trem na Hauptbahnho e imergiam no anonimato de onde vieram, e ali dariam aulas de música até se aposentarem. (...) Segundo: antes mesmo do fiasco ocorrido havia dois dias, por um ardil de seu execrável professor, fato que precipitara a decisão de regressar ao Brasil, faltando apenas cancelar o concerto de Schumann, constatara que um amador – como ele passara a se considerar – não teria a menor oportunidade perante os colossos de determinação que entregavam as almas ao demônio para superarem seus concorrentes reais ou imaginários, abrindo mão da paz para dedicarem todos os seus dias, suas horas, seu sangue e seus ossos à prática do instrumento.”
Fonte: ZeroHora/Alexandre Lucchese (alexander.lucchese@zerohora.com.br) e Carlos André Moreira (carlos.moreira@zerohora.com.br) em 21/09/2016.