CORRESPONDÊNCIAS REFLETEM HISTÓRIA DO PAÍS
Antologia CARTAS BRASILEIRAS reúne missivas de personagens que marcaram a nação.
Livro: CARTAS BRASILEIRAS de Sérgio Rodrigues (Organizador) Companhia das Letras, 288 páginas.
“Pretendo ser breve nessa missiva, pois eu sei quão ocupado é um presidente da República”, prometeu Arcelina Helena. Ciente de que Juscelino kubitschek não devia andar com muito tempo livre naquele ano de 1959, véspera da inauguração de Brasília, a remetente não demorou a dizer o que queria. “Peço-lhe que me envie vistas e tudo o mais que o senhor tiver de interessante e concreto sobre Brasília”, escreveu. Era assunto urgentíssimo. Com pouco tempo para concluir o trabalho sobre Brasília para a aula de geografia e pouco material sobre o assunto, a estudante da quarta série do ginásio apelava para JK.
Anexada à volumosa correspondência enviada ao fundador da nova capital e provavelmente sem resposta, a carta é uma das joias desenterradas pelo livro CARTAS BRASILEIRAS. Organizada pelo jornalista e ficcionista mineiro Sérgio Rodrigues (autor do romance O DRIBLE), a antologia foi inspirada no best-seller CARTAS EXTRAORDINÁRIAS (Companhia das Letras), compilado pelo inglês Shaun Usher, que reproduz do comovente bilhete suicida da escritora Virginia Woolf (1882-1941) à receita que a rainha Elizabeth II enviou ao presidente americano Eisenhower (1890-1969).
Rodrigues repetiu a fórmula com a correspondência de personagens-chave da história do Brasil e optou por não descartar as missivas enviadas a eles por figuras desconhecidas. Sábia decisão que, além do pedido de ajuda da estudante a JK, permitiu a inclusão da carta redigida, com papel timbrado, por membros da Congregação Mariana São Gonçalo em agosto de 1970. É endereçada ao então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid (1914-1991). Ao que tudo indica, o endurecimento da ditadura militar promovido pelo então presidente Emilio Garrastazu Médici (1905-1985) não tinha sido suficiente para a turma da organização católica.
“Julgamos muito importante, se o governo desejar de fato preservar os valores morais, uma ação mais enérgica nas televisões e uma escolha mais cuidadosa dos censores”, escreveu o grupo, que pediu antes mais rigor com os comerciais e com as telenovelas “Assim na Terra como no Céu”, de Dias Gomes (1922-1999), “Irmãos Coragem”, de Janete Clair (1925-1983), e “Simplesmente Maria”, adaptada por Benedito Ruy Barbosa.
Imerso no projeto durante quase um ano, Rodrigues conta ter lido mais de mil cartas para chegar às 80 selecionadas, todas ilustradas por fac-símiles e fotos antigas e acompanhadas por verbetes que contextualizam cada uma delas. Nem todas puderam ser publicadas em razão do veto imposto pelos familiares de alguns autores já mortos. É por isso que você não lerá cartas de Manuel Bandeira (1886-1968) e Guimarães Rosa (1938-1967), entre outros (a publicação em livro de uma correspondência, à eceção das que se encontram em domínio público, demanda a autorização do remetente e do destinatário ou, na falta de um deles, de seus herdeiros).
Uma das mais tocantes é endereçada ao produtor musical João Marcello Bôscoli. Foi escrita pela cantora Elis Regina (1945-1982) dias antes do primeiro aniversário do filho. “Você chegou e arrasou, acabou com o baile”,redigiu a cantora, antes de mergulhar em uma de suas crises. “Se porventura eu falhar, não estiver à altura, se for menos do que você acha que merecia, não me imagine mais do que eu sou. Tenho tantos problemas quanto você. Não me culpe. Antes, procure me compreender. Sou resultado do que a vida fez comigo, inconsciente e inconsequentemente.”
A carta foi guardada num cofre, para que fosse entregue quando Bôscoli completasse 18 anos, e só chegou ao destinatário em 2015, após ser revelada pelo jornalista Julio Maria em sua biografia da cantora, “Nada Será como Antes”.
Cartas fundamentais da história do país estão lá, incluindo a primeira delas, com a qual o escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral (1467-1520) comunicou ao rei de Portugal certo “achamento”. Como bem observa o organizador, é talvez a mais famosa do Brasil – e uma das menos lidas. Daí a vantagem da transcrição que sucede o fac-símile da missiva de Pero Vaz de Caminha (1450-1500).
A carta de despedida com a qual o presidente Getúlio Vargas (1882-1954) saiu da vida para entrar na história não poderia ficar de fora. Ou melhor, as duas versões dela, que sugerem que o tiro que ele deu no próprio coração foi cuidadosamente premeditado.
Folclórica, a carta de Michel Temer a Dilma Rousseff, de dezembro de 2015, na qual o então vice-presidente se queixa da desconfiança da presidente, é a mais recente.
Estudioso da língua portuguesa, Rodrigues não poderia deixar de atentar nas transformações que as cartas sofreram até se tornarem obsoletas. É com um antigo clichê, “espero que esta o encontre bem”, que ele inicia a apresentação do livro. “Muita coisa podia acontecer – e acontecia – entre escrita e leitura.”
Para o organizador, o e-mail e as mensagens digitais que permeiam nosso dia a dia não podem ser considerados sucessores das cartas. “Elas em geral denotam afetividade e demandam que o remetente faça alguma contextualização”, afirma Rodrigues, que não se lembra da última vez que redigiu uma carta. “Não há nada disso hoje em dia.” Nostalgia à parte, ele demonstra uma preocupação. “Fico pensando como os historiadores do futuro farão para reconstituir nossa época baseados nas correspondências de hoje em dia.”
Fonte: Revista Valor/Daniel Salles em 01/12/2017