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Estudos de Narrativa
Estudos de Narrativa

 

ESTUDOS DE NARRATIVA

A narrativa

 

As mil e uma noites é uma obra anônima que conta a história de Sherazade, uma moça bela e sagaz. Escolhida pelo sultão para ser a sua acompanhante por uma noite, a jovem sabia que corria perigo de vida, pois aquele tinha por hábito executar as mulheres com as quais dormia.

 

Arguta, Sherazade traçou uma estratégia de sobrevivência: decidiu narrar todas as noites uma história para o sultão. Parava de contá-la quando a narrativa atingia o seu ápice.

 

Curioso e seduzido pela habilidade de Sherazade como narradora, o sultão passou a esperar ansiosamente pela continuação da história na noite seguinte, quando Sherazade emendava a narrativa em outra e usava a mesma estratégia. Deste modo, Sherazade conseguiu salvar-se.

 

Podemos tomar a história da personagem Sherazade como uma metáfora do papel da narrativa: ao contarmos histórias, escapamos da morte, simbolicamente.

 

No livro As estruturas narrativas, Tzvetan Todorov afirmou:

“A narrativa é igual à vida; a ausência de narrativa, à morte”.

 

Ao vincular a narrativa à vida, Todorov mostra o seu poder: o ato de narrar é um adiamento simbólico da morte. Para o autor, “a ausência de narrativa significa a morte”, pois levaria ao silenciamento e ao vazio.

 

O ato de contar histórias é inerente ao ser humano. A narrativa é parte fundamental de nossas vidas: traz sentido ao nosso cotidiano e permite a reflexão sobre o mundo.  Narrar é uma atividade primordial para o ser humano.

 

O GÊNERO NARRATIVO EM SEUS PRIMÓRDIOS: A EPOPEIA

As origens do gênero narrativo situam-se na epopeia, que é a expressão do que chamamos narrativa épica.

 

As primeiras narrativas épicas herdadas por nós, isto é, as primeiras epopeias foram a Ilíada e a Odisseia, atribuídas ao poeta grego Homero e escritas há cerca de três mil anos atrás.

 

Homero partiu das narrativas míticas presentes no imaginário grego e as reelaborou em um discurso literário, que aproveitava também elementos históricos e traços criativos.

 

A epopeia é uma narrativa extensa, dividida em cantos. Cada canto narra um episódio completo e articula-se aos demais de modo conexo, de forma a organizar a unidade narrativa em torno de um tema maior: os grandes feitos heroicos de um povo.

 

O gênero épico valoriza a coletividade e a celebra. Para Georg Lukács, o destaque da experiência coletiva vitoriosa na narrativa épica está relacionado ao modo de organização da sociedade grega antiga.

 

Lukács afirma que há um elo entre o discurso épico, os modos de pensar e os valores gregos da Antiguidade. Ele percebe a sociedade grega regida por ideais de harmonia, com forte delimitação e consciência dos papéis sociais.  A ideia do destino predeterminado e de sua aceitação também estaria presente, bem como uma forte religiosidade.

 

Essas características dialogariam com a configuração épica. A celebração épica da coletividade fazia sentido em uma sociedade anterior à consciência subjetiva, na qual o sujeito encontra a sua identidade como membro de um grupo. A presença do maravilhoso e do sobrenatural, explícito, por exemplo, na intervenção dos deuses na vida das personagens também, assim como a existência de um herói capaz de aceitar o seu destino.

 

A imagem ao lado apresenta o herói épico Ulisses, também chamado de Odisseu. A pintura representa o Canto XII de Odisseia, no qual é retratado o episódio das sereias.

 

O HERÓI ÉPICO

A figuração da consciência do grupo e a presença marcante da experiência coletiva levaram Lukács a apontar a inexistência de um herói individual na epopeia:

 

“O herói da epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo”.

 

Lukács defendeu a impossibilidade de o herói épico ser um indivíduo porque a sua identidade está atrelada ao grupo do qual participa: fora deste, a sua vida perde o sentido:

 

“Desde sempre se considerou traço essencial da epopeia que seu objeto não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade”.

 

Em um tempo anterior ao da consciência individual, a épica reafirma os elos comunitários. Ao celebrar o herói, dignifica o grupo: a argúcia de Ulisses, o solerte, não é apenas sua, mas representa a inteligência de todo povo grego.

 

Por sua configuração, não há espaço na épica para o destaque e a autonomia do sujeito, como postulou Lukács:

 

“A perfeição e a completude do sistema e dos valores que determinam o cosmo épico criam um todo demasiado orgânico para que uma de suas partes possa tornar-se tão isolada em si mesma, tão forte e voltada a si mesma, a ponto de descobrir-se como uma interioridade, a ponto de tornar-se individualidade”.

 

A LINGUAGEM ÉPICA

Como narrativa interessada em ratificar o papel do grupo social e em figurar o heroísmo e a história de um povo, representado como grandioso, a epopeia expressava-se em uma linguagem alusiva a esta grandeza.

 

Originalmente, o discurso épico era enunciado em versos. Durante a Idade Média, surgiram as chamadas canções de gesta medievais, como um desdobramento do gênero épico.

 

Ainda no período medieval, emergiu um novo tipo de narrativa: as novelas de cavalaria. Embora inicialmente fossem escritas em versos, posteriormente passaram a ser escritas em prosa.

 

Iluminura de um exemplar de “A canção de Roland”, canção de gesta medieval. Na imagem, o herói Roland aparece massacrando sarracenos.

 

No final da Idade Média, o poeta florentino Dante Alighieri escreveu A Divina Comédia, um texto representativo dos processos de passagem da narrativa épica pura para as formas romanescas, que surgiriam alguns séculos depois. Ainda há aqui a forma épica e a presença dos laços sociais, mas emerge já traços de consciência subjetiva.

 

Ao compor as suas epopeias, Homero teria inventado uma nova forma de escrever a língua grega, chamada de língua homérica, a fim de conseguir transpor o discurso oral para a linguagem escrita. Pierre Vidal-Naquet afirma, em seu livro O mundo de Homero, que a Ilíada e a Odisseia foram escritas:

 

Numa língua parcialmente artificial que repousa sobre dois dialetos falados, sobretudo na Ásia Menor (hoje a Turquia): o jônio e o eólio.

 

Aos poucos, o metro épico inicial foi substituído pelo verso decassílabo, ainda clássico e grandioso, mas ainda assim mais fácil de ser composto do que o hexâmetro dactílico, de dificílima composição.

 

O metro inicial da epopeia era chamado de hexâmetro dactílico, um tipo de verso com grandeza e pompa, de acordo com o que era esperado da linguagem de um poema cujo intuito era destacar a magnitude de um povo. Sobre o hexâmetro dactílico, afirma Vidal-Naquet:

 

Cada verso é formado por seis medidas (hex significa “seis”, em grego, e métron, “medida”). Cada medida é composta por uma sílaba longa e duas sílabas breves (é o que se chama um dactílico) ou então por duas longas (nesse caso um espondeu).

 

Não existe apenas um acento de intensidade, como em português, numa das três últimas sílabas da palavra, mas há também um acento “tonal”, quer dizer, melódico. Para entender, basta dizer o nome de Homero utilizando para as duas primeiras sílabas, respectivamente, as notas sol e lá.

 

A  estrutura da epopeia

Em termos de estrutura, a poesia épica divide-se, classicamente, em cinco partes:

Proposição

Apresentação do assunto a ser desenvolvido no poema épico.

Invocação

O poeta invoca a proteção e a inspiração para poder levar a cabo a missão de cantar as glórias de um povo. A invocação pode ser ligada a dois aspectos:

• À consciência do poeta sobre a magnitude de sua tarefa;

• À ideia da inspiração como uma causa externa, em obediência à convenção de modéstia, por parte do poeta.

Dedicatória

Narração

A narração da história propriamente dita. Desdobra-se em:

• Conflito

• Solução

Epílogo

 

O NARRADOR ÉPICO

O narrador épico é o chamado narrador clássico. Possui o foco narrativo em terceira pessoa e narra a história de modo distanciado e impessoal, como um observador impassível. Esta impassibilidade é reforçada pelo tom da linguagem poética épica, como mostra Angélica Soares, em Gêneros literários, obra disponível em nossa biblioteca virtual:

 

O hexâmetro era mantido até o último verso. Esta simetria estaria em acordo com a inalterabilidade de ânimo exigida do narrador épico, que se devia manter distanciado dos fatos.

 

O distanciamento do narrador épico conjuga-se ao seu desejo de presentificar as cenas narradas através de imagens claras e capazes de levar o leitor a imaginar as cenas narradas, sem dificuldades.

 

COMO QUALQUER NARRATIVA, A EPOPEIA APRESENTA OS SEGUINTES ELEMENTOS:

ENREDO

NARRADOR

PERSONAGEM

TEMPO

ESPAÇO

 

O romance como desdobramento do gênero narrativo

O romance surge na Europa, em fins do século XVIII.

 

Inicialmente, era uma narrativa fortemente relacionada aos valores da burguesia e representava, no universo ficcional romanesco, os modos de vida, as preocupações e as aspirações dessa classe social, em um momento de consolidação de sua hegemonia.

 

O romance não é derivado da épica. Trata-se de uma nova forma narrativa, em consonância com os valores de uma sociedade capitalista e focada na consciência individual, para a qual não fazia mais sentido o discurso magnânimo e com ênfase na coletividade, como proposto pela epopeia.

 

A diferença fundamental entre a narrativa épica e a narrativa romanesca não se encontra em suas formas diversas, ou seja, no fato do romance ser escrito em prosa e dividido em capítulos, enquanto a epopeia dividir-se-ia em cantos escritos em versos. O que distinguiria, primordialmente, as duas expressões narrativas seria o fato de responderem a visões de mundo e a modos de pensar profundamente diversos.