O Simbolismo: Um Novo Romantismo?
Tomás Antônio Gonzaga
Tomás Antônio Gonzaga nasceu em Portugal, cresceu na Bahia e floresceu como poeta em Minas Gerais , de 1872 a 1882. Sua poesia confere aos caracteres arcádicos sentimentos universais com rara habilidade rítmica e melódica, constituindo os mais belos poemas de amor da nossa literatura.
Sua obra avulta em nosso Arcadismo e nele se inscreve como manifestação de individualidade que excede os parâmetros do período.
Sua Marília de Dirceu apresenta ao leitor não apenas os deleites da vida no campo acompanhado da pastora, pois ultrapassa o contexto campestre, mas também registra os acontecimentos da própria vida do poeta, preso por ocasião da Inconfidência Mineira.
Estrutura da Obra Marília de Dirceu
A obra é composta de três partes, que reúnem 33 liras na primeira, 38 na segunda e 9 na terceira, além de sonetos.
Na primeira, há uma profusão de referências clássicas em liras de versos variados, cujo tema principal é o amor do eu lírico por sua Marília:
Lira VII
Vou retratar a Marília,
A Marília, meus amores;
Porém como? Se eu não vejo
Quem me empreste as finas cores:
(...)
Entremos, Amor, entremos,
Entremos, Amor, entremos,
Entremos na mesma Esfera,
Venha Palas, venha Juno,
Venha a Deusa de Citera,
Porém não, que se Marília
No certame antigo entrasse,
Bem que a Páris não peitasse,
A todas as três vencera.
Vai-te, Amor, em vão socorres
Ao mais grato empenho meu:
Para formar-lhe o retrato
Não bastam tintas do Céu
Há, ainda, nesta parte, excelentes exemplos de adesão do poeta aos referenciais neoclássicos, seja na explicitação da delegação da voz poética, seja na consolidação dos princípios bucólicos da Arcádia.
Análise do Poema
Lira I
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Que viva de guardar alheio gado;
De tosco trato, de expressões grosseiro,
Dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite
E mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha estrela!
Eu vi o meu semblante numa fonte:
Dos anos inda não está cortado;
Os pastores que habitam este monte
Respeitam o poder de meu cajado.
Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Ao som dela concerto a voz celeste;
Nem canto letra que não seja minha,
Graças, Marília bela,
Graças à minha estrela!
A) O eu lírico se apresenta como alguém de posses; é um pastor mas não um “vaqueiro”. Aqui se reserva a ênfase em sua condição privilegiada.
B) Nesses versos, notamos a importância do eu lírico: alguém que não está acostumado aos trabalhos pesados ao ar livre. Ser “pastor” é uma delegação de voz poética, não corresponde à realidade.
C) note como o eu lírico reafirma sua condição de pessoa bem-sucedida. A palavra “casal” tem o sentido de sítio.
D) Aqui, a referência é feita à aparência física do eu-lírico: ainda sem rugas.
E) o sentido figurado pode ser percebido pela menção à posição social, pois o poeta era Ouvidor-Geral de Vila Rica, um cargo muito elevado.
F) “Alceste” é a referência a Glauceste Saturnino, pseudônimo de Cláudio Manuel da Costa.
A prisão, como consequência de sua participação na Inconfidência Mineira, é o contexto do poeta na segunda parte da obra. Os sentimentos de tristeza e solidão são constantes, bem como as reminiscências da vida sonhada com a doce Marília.
POEMAS COMENTADOS
Lira I
Já não cinjo de louro a minha testa;
Nem sonoras canções o Deus me inspira:
Ah! que nem me resta
Uma já quebrada,
Mal sonora Lira!
Mas neste mesmo estado, em que me vejo,
Pede, Marília, Amor que vá cantar-te:
Cumpro o seu desejo;
E ao que resta supra
A paixão, e a arte.
Observe que o poeta compara sua vida presente ao passado tranquilo. Essa menção é feita aos próprios versos da primeira parte. Trata-se de expediente recorrente nessa fase, sugerindo ao leitor que, ao se refugiar no passado, o poeta encontra o lenimento para suavizar as horas de desespero de seu infortúnio.
Lira XV
Eu, Marília, não fui nenhum Vaqueiro,
Fui honrado Pastor da tua aldeia;
Vestia finas lãs, e tinha sempre
A minha choça do preciso cheia.
Tiraram-me o casal, e o manso gado,
Nem tenho, a que me encoste, um só cajado.
O passado criado nos poemas da primeira parte, momento de alegria e tranquilidade.
O presente do eu lírico se mostra como um momento de injustiça e dor.
Para ter que te dar, é que eu queria
De mor rebanho ainda ser o dono;
Prezava o teu semblante, os teus cabelos
Ainda muito mais que um grande Trono.
Agora que te oferte já não vejo
Além de um puro amor, de um são desejo.
Se o rio levantado me causava,
Levando a sementeira, prejuízo,
Eu alegre ficava apenas via
Na tua breve boca um ar de riso.
Tudo agora perdi; nem tenho o gosto
De ver-te aos menos compassivo o rosto.
Propunha-me dormir no teu regaço
As quentes horas da comprida sesta,
Escrever teus louvores nos olmeiros,
Toucar-te de papoulas na floresta.
Julgou o justo Céu, que não convinha
Que a tanto grau subisse a glória minha.
Ah! minha Bela, se a Fortuna volta,
Se o bem, que já perdi, alcanço, e provo;
Por essas brancas mãos, por essas faces
Te juro renascer um homem novo;
Romper a nuvem, que os meus olhos cerra,
Amar no Céu a Jove, e a ti na terra.
Fiadas comprarei as ovelhinhas,
Que pagarei dos poucos do meu ganho;
E dentro em pouco tempo nos veremos
Senhores outra vez de um bom rebanho.
Para o contágio lhe não dar, sobeja
Que as afague Marília, ou só que as veja.
Senão tivermos lãs, e peles finas,
Podem mui bem cobrir as carnes nossas
As peles dos cordeiros mal curtidas,
E os panos feitos com as lãs mais grossas.
Mas ao menos será o teu vestido
Por mãos de amor, por minhas mão cosido.
Nós iremos pescar na quente sesta
Com canas, e com cestos os peixinhos:
Nós iremos caçar nas manhãs frias
Com a vara envisgada os passarinhos.
Para nos divertir faremos quanto
Reputa o varão sábio, honesto e santo.
Nas noites de serão nos sentaremos
C’os filhos, se os tivermos, à fogueira;
Entre as falsas histórias, que contares,
Lhes contarás a minha verdadeira.
Pasmados te ouvirão; eu entretanto
Ainda o rosto banharei de pranto.
Quando passarmos juntos pela rua,
Nos mostrarão c’o dedo os mais Pastores;
Dizendo uns para os outros: “Olha os nosso
“Exemplos da desgraça, e são amores”.
Contentes viveremos desta sorte,
Até que chegue a um dos dois a morte.
Em sua obra Na sala de aula, Antônio Candido nos ensina a análise da Lira XV. O autor chama a atenção para a divisão das estrofes em duas partes. Nos quatro primeiros versos, o eu lírico rememora os tempos idos, descritos em poemas da primeira parte, e confronta com o seu presente, nos dois últimos versos.
A terceira parte de Marília de Dirceu foi publicada mais tarde, não constava da primeira edição e muitos a consideraram apócrifa, mas Rodrigues Lapa dirimiu essa dúvida, afirmando ser autêntica a edição de 1812. Incluíram-se nessa parte sonetos esparsos de temáticas variadas.
Marília
A jovem musa inspiradora é Maria Doroteia Joaquina de Seixas, uma adolescente por quem o nosso poeta, quando se encontrava na faixa dos 40 anos, enamorou-se, tornando-se seu noivo. A relação, interrompida com a prisão do poeta, inspira-o, associando de maneira pioneira a vida à obra.
Segundo Antônio Candido, não se pode levar ao extremo a interpretação biográfica, pois a musa nem sempre se apresenta da mesma forma, desindividualizando-se e tornando-se tema:
“O tema Marília é modulado por ele com certa amplitude. Temos desde uma presença física concretamente sentida, até uma vaga pastorinha incaracterística, mero pretexto poético (...). Na medida em que é objeto de poesia, Doroteia de Seixas vai-se tornando cada vez mais um tema.(...) Doroteia se desindividualizou para ser absorvida na convenção arcádica: é a pastora Marília, objeto ideal de poesia, sem existência concreta. Por isso mesmo, ora é loura, ora morena; ora compassiva, ora cruel: em qualquer caso, sem nervo nem sangue. É uma estatueta de porcelana ...”(p.19-121).
Em outras palavras, a namorada Maria Doroteia é inspiração para a construção da personagem arcádica Marília. Assim, sua descrição física nem sempre corresponde à realidade.
Lira II
(...)
Os seus compridos cabelos,
Que sobre as costas ondeiam,
São que os de Apolo mais belos,
Mas de loura cor não são.
Têm a cor da negra noite;
E com o branco do rosto
Fazem, Marília, um composto
Da mais formosa união.
Santa Rita Durão – Caramuru
A obra Caramuru, de Frei José de Santa Rita Durão, narra o encontro do português Diogo Álvares com os tupinambás, na costa da Bahia, quando sofreu um naufrágio.
Leia um trecho do poema:
De um varão em mil casos agitado,
Que as praias discorrendo do Ocidente,
Descobriu o Recôncavo afamado
Da capital brasílica potente:
Do Filho do Trovão denominado,
Que o peito domar soube à fera gente;
O valor cantarei na adversa sorte,
Pois só conheço herói quem nela é forte.
Os versos de estirpe camoniana contam
a aventura do português, que é um símbolo
da associação entre o colonizador e o indígena.
Os versos de estirpe camoniana contam a aventura do português, que é um símbolo da associação entre o colonizador e o indígena.
Conta a lenda que Diogo, para defender-se dos índios, havia disparado um tiro com sua arma de fogo. Segundo o autor, esse feito teria lhe rendido a alcunha, que significaria “filho do trovão”. Hoje, há estudos que contestam o significado, pois entendem que Caramuru seria uma referência ao local de onde provinha o português; sendo assim um apelido dado por seus conterrâneos.
Não de todo irrelevante a informação deixa transparecer a impregnação ideológica que contamina a epopeia, como percebe Alfredo Bosi:
“Domando a “fera gente” e as próprias paixões, Diogo é misto de colono português e missionário jesuíta, síntese que não convence os conhecedores da história, mas que dá a medida justa dos valores de Frei José de Santa Rita Durão. Na medida em que o herói encarna, aliás, ossifica tais valores, ele se enrijece e acaba perdendo toda capacidade de ativar a trama épica.”
Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix,1994. p.70)
Silva Alvarenga: Um Elo com o Romantismo
Parte da crítica entende a obra de Manuel Inácio da Silva Alvarenga, Glaura, como um “elo que prende os árcades e os românticos” (Ronald de Carvalho). De fato, sua lírica extremamente musical, de fácil memorização e delicado campo semântico nos leva a aproximar as duas estéticas na obra do autor. Além disso, estão presentes referências à natureza brasileira, mencionando árvores como o cajueiro e a mangueira, por exemplo.
Conhecemos obras e autores importantes do Arcadismo brasileiro. Seus versos compõem a tradição de nossa literatura e dialogam com a atualidade, seja formando o arcabouço temático, seja constituindo nossa história literária.
Vamos ler um de seus rondós?
“Sem cessar na intensa frágoa
Cresce o mísero na intensa desgosto:
Só ao ver teu belo rosto
Minha mágoa se abrandou.”
Para Afrânio Coutinho, “(...) Silva Alvarenga realizou uma poesia cuja marca mais forte é a espontaneidade. (...) E, de certo modo, não deixa de ser paradoxal que, sendo ainda mais pobre de motivos e variações formais do que Cláudio e Gonzaga, e com uma produção qualitativamente ainda mais irregular, tenha... conservado até hoje uma linguagem atual. Deve-se isso, em parte, ao fato de que nele o bucolismo arcádico é apenas um eco, e um eco muito apagado: fica somente na qualidade de pastor, na invocação de ninfas e dríades. Acrescente-se certa ingenuidade e simplicidade muito autênticas, e teremos a definição da Glaura: a forma exterior é elaborada, preciosa, mas a estrutura interna dos poemas, pela linguagem e monotonia dos motivos, é ingênua e simples.”
(COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 7ª ed. rev. e ampl. São Paulo:
Global, 2004. p. 237)