ERICO VERISSIMO CONTADOR DE HISTÓRIAS
Há 70 anos, Erico Verissimo publicou O CONTINENTE, primeira parte da monumental trilogia O TEMPO E O VENTO
A obra-prima do principal nome da literatura gaúcha completa 70 anos em 2019. Erico Verissimo publicou O CONTINENTE, primeira parte de O TEMPO E O VENTO, painel que retrata a história do Rio Grande do Sul em meio a guerras de fronteira e lutas pelo poder entre oligarquias, em dezembro de 1949. A trilogia foi complementada com O RETRATO, em 1951 e O ARQUIPÉLAGO, em 1961. “O que até hoje impressiona é a coragem (na falta de outra palavra) do autor de se lançar numa obra sem precedentes na literatura brasileira, inédita na forma, na pretensão e na dimensão – diferente, inclusive, de tudo que ele escrevera antes e viria a escrever depois”, diz o filho, Luis Fernando Verissimo.
A obra completa de Erico reúne mais de três dezenas de títulos, abrangendo não apenas romances e novelas, mas também livros de contos, infantojuvenis e de viagens. á pelo menos seis adaptações de suas criações para o cinema e outras sete para minisséries ou novelas de televisão. Para se ter ideias do alcance da produção do romancista nascido em Cruz Alta em 17 de dezembro de 1905, os textos de Erico estão traduzidos em inglês, alemão, espanhol, francês, italiano, finlandês, húngaro, romeno, russo, sueco, japonês e indonésio.
“Uma lista dos dez principais romances brasileiros de todos os tempos na qual não apareça O TEMPO E O VENTO simplesmente não deve ser levada a sério”, sentencia Regina Zilberman, professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFRGS, para quem a trilogia é, ao mesmo tempo, ponto de partida e de chegada da moderna literatura brasileira, até então bastante direcionada ao regionalismo. “No Sul, por exemplo, enquanto Cyro Martins, Pedro Wayne, Aureliano de Figueiredo Pinto e Ivan Pedro Martins denunciavam as condições sociais na região da campanha, Erico propunha uma nova pauta: a formação das classes dirigentes e os meios pelos quais elas acessaram o poder”.
Ainda assim, a trilogia é “muito mal lida”, assegura Maria da Glória Bordini, que cuidou do acervo de Erico até 2009. Conforme ela, a maioria das pessoas só leu O CONTINENTE, que aborda a fundação do Rio Grande do Sul, com destaque para a imagem épica e heroica do Capitão Rodrigo. Não obstante, essa idealização vai se desintegrando à medida em que a narrativa avança nos tomos seguintes até sobrar pouco ou quase nada dos vestígios de honra e bravura. “O TEMPO E O VENTO é genial por erguer o mito e depois desconstruí-lo”, salienta Maria da Glória.
Esse distanciamento que possibilitou a Erico observar com isenção a gênese das elites sulinas talvez tenha sido facilitado por ele ser de uma região do Estado com aspectos diferenciados: “A zona em que nasci dá mais impressão de Minas. Cruz Alta não é a parte ‘teatral’ do Rio Grande do Sul, daquela gente tipo Flores da Cunha, das grandes tiradas e arrebatamentos. Minha gente é mais seca”, afirmou, certa vez.
O pano de fundo da política é uma das marcas da obra de Erico, que se posicionou em defesa da liberdade de expressão e contra as desigualdades sociais. “Sua atitude hoje, neste Brasil que namora o fascismo, seria a mesma que o levou a escrever e se pronunciar contra o racismo, o machismo, a nossa miséria crônica, o caudilhismo etc”, diz Luis Fernando. De fato, em entrevista para a revista Manchete, em 1971, Erico sublinhou: “Não vejo como se possa escrever sobre pessoas e fatos desta hora eliminando de caso pensado problemas e dramas que nos saltam na cara todos os dias: guerras, fome, injustiça, mentiras publicitárias, interesses industriais e comerciais mantidos à custa de vidas humanas, falta de liberdade, torturas policiais etc.”.
Já em julho de 1946, o ideário político do romancista gaúcho viera à tona ao ser homenageado com um banquete por parlamentares, magistrados e comerciantes de Porto Alegre na Sociedade Germânia, quando fez questão de declarar: “Por viver de acordo com o que penso e escrevo, tenho sido agraciado com os títulos de bolchevista, corruptor da mocidade, cínico, depravado, herege e candidato à fogueira. E, no entanto, meus amigos, eu vos dou a minha palavra que de há muito pus a minha pena ou, antes, a minha máquina de escrever a serviço de uma única causa – a causa humana”.
UM RECORDISTA COM FORTE APELO POPULAR
Um dos méritos de Erico Veríssimo é ter sido um escritor popular em um país com baixo índice anual de leitura – apenas 2,9 livros por habitante, dado que chega a 7 na França, 5,1 nos Estados Unidos e 4,9 na Inglaterra. Por décadas, só ele e Jorge Amado sobreviveram da literatura no Brasil. No caso do autor gaúcho, a virada na carreira se deu com OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO, de 1938, quando ganhou projeção nacional e, mesmo fora do país, passou a viver dos royalties de seus livros. É sua obra comercialmente mais bem-sucedida, com 1 milhão e meio de exemplares vendidos, cita a historiadora Elisabeth Torresini em OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO – HISTÓRIA DE UM SUCESSO LITERÁRIO (Literaris, 2003).
Com escrita de fácil compreensão, Erico evitava abismos insondáveis de perfis psicológicos, exibindo em contraste notável talento de caricaturista para retratar personagens com máxima economia: “Dois parágrafos bastam para que o leitor enxergue a figura que entra em cena”, aponta Luis Augusto Fischer, professor de Literatura Brasileira da UFRGS. Erico tinha o hábito de desenhar os personagens à medida que escrevia, acentuando detalhes como olhos, nariz, cabelo, roupa, etc., artifício que ajudava a descortinar com mais clarividência a criatura que brotava de sua imaginação. Outra faceta que o aproximava dos leitores do século XX era a sintonia com anseios e esperanças de uma população que trocava o campo pela cidade. Romancista cosmopolita, cometeu o exagero de plantar um arranha-céu de 34 andares no Centro da Porto Alegre de 1938 em OLHAI OS LÍRIOS..., realidade que só viria a se materializar um quarto de século depois na cidade.
Para os especialistas, a clareza do texto de Erico se deve, em parte, à influência de ingleses como Somerset Maughan (autor de SERVIDÃO HUMANA e O FIO DA NAVALHA) “na contramão dos escritores de seu tempo, que admiravam mais a volúpia e as frases de efeito da literatura francesa”, anota Fischer. A afinidade com a cultura anglo saxônica tinha a influência do pai, que cultivava planos de enviar o filho para estudar na Universidade de Edimburgo, na Escócia. Em vez disso, ele cursou o ginásio em regime de internato no Colégio Cruzeiro do Sul, de Porto Alegre, escola dirigida por missionários episcopais (“gente que vinha do Texas”, segundo Erico), interrompendo os estudos por falta de dinheiro da família. “Não sei se você sabe que eu não tenho nem ginásio completo”, comentava.
SUCESSO ALÉM DO NARIZ TORTO DA CRÍTICA
A popularidade de OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO abriu flanco para o ataque de críticos que consideravam os romances de Erico fáceis de ler graças a concessões em favor de uma linguagem superficial. A insinuação de falta de consistência de sua obra se faz presente até em um diálogo da peça BONITINHA, MAS ORDINÁRIA, de Nelson Rodrigues, de 1962. Em conversa com a namorada, moça ingênua e sem predicados literários, o personagem Edgar cita OS SERTÕES, de Euclides da Cunha. “Erico Verissimo também é bom!”, responde a moça, ao que o namorado reage com um “Ora, bolas!”.
Para Luis Fernando Verissimo, “o sucesso de OLHAI OS LÍRIOS..., que dura até hoje, mexeu com o preconceito segundo o qual livro popular não pode ser bom ou literariamente respeitável”. Além disso, críticos como Antonio Candido e Silvano Santiago apontaram o uso de técnicas sofisticadas já na primeira frase da obra – em CAMINHOS CRUZADOS, de 1935, a composição fragmentada e multifacetada apresenta histórias paralelas sob a inspiração não só de CONTRAPONTO, de Aldous Huxley, que o próprio Erico havia traduzido, mas também de OS MOEDEIROS FALSOS, de André Gide.
Indiferente ao nariz torcido de parte da crítica, Erico dizia-se um “contador de histórias” ou “mais artesão que artista” e não alimentava expectativas de se transformar em um imortal da Academia Brasileira de Letras. Na cama de um hospital, após o primeiro infarto, em 1961, alguém telefonou para perguntar se queria lançar sua candidatura. “Entrar para a Academia, eu? Mas se eu já sou quase uma vaga!” Gostava de qualificar-se com o um “aprendiz perplexo”, repetindo a expressão usada por um personagem de Incidente em Antares. Em outra ocasião, arriscou-se a discorrer sobre o que era, afinal, um ficcionista: “É um bicho raro, sem a menor dúvida. O diabo que o entenda, pois Deus já desistiu”.
O SILENCIOSO HEROÍSMO DAS MULHERES
Outro tema que não perde a atualidade na obra de Erico é a condição feminina na sociedade patriarcal. Embora a ação dos homens em O TEMPO E O VENTO reforce a imagem de valentia tão cara ao gaúcho, são as mulheres que, ao final de contas, se revelam mais fortes, ainda que na capacidade de suportar o sofrimento. “Erico denuncia o machismo através de personagens femininas que não têm voz ativa e devem obediência aos maridos. Os homens, ao contrário, as traem quando querem”, diz Maria da Glória Bordini.
O heroísmo austero e silencioso dessas mulheres fictícias reflete a história pessoal do escritor, que exaltava a coragem da mãe – Abegahy, a dona Bega – ao tomar a iniciativa de separação no casamento em face da irresponsabilidade do comportamento do pai, Sebastião, trabalhando como costureira para sustentar Erico e o irmão Ênio. Ele revelou só ter feito “as pazes” com o pai (a quem caracterizava como um bon-vivant, boêmio e mulherengo) quase 30 anos após a morte dele, ao escrever a cena em que o personagem Floriano faz um ajuste de contas com a figura paterna em O ARQUIPÉLAGO. “Como eu gostaria de me encontrar com meu pai naquelas circunstâncias e lhe dizer: ‘Papai, eu não sou o que você esperava e você não é o que eu sonhava, mas somos duas pessoas humanas. Temos que nos encontrar no plano humano. Temos que nos amar’”.
Outra presença feminina de impacto em sua biografia é Mafalda, com quem se casou em 1931: “Ela é, de longe, a melhor cabeça da família. Eu, muito burro, levei tempo para descobrir que ela sempre tinha razão”, dizia. Em seus últimos anos de vida, Erico era visto de braços dados com Mafalda a caminhar pelas amenas ladeiras de Petrópolis com passos de “velhas inglesas, parando a qualquer pretexto” para cumprir recomendações do cardiologista. A neta Fernanda (filha de Luis Fernando) recorda o avô como pessoa generosa e pouco dramática, com espírito agregador. “Entre as lembranças boas da infância, está a de acordar aos domingos com o barulho de conversas animadas quando havia visitas ou com ele escutando música erudita em alto volume”.
Ao morrer, em consequência de outro infarto, em 25 de novembro de 1975, Erico deixou quase pronto o segundo volume de SOLO DE CLARINETA, lançado postumamente em 1976 com organização de Flávio Loureiro Chaves. Além disso, já tinha título – SOL E MEL – e esboço de um romance sobre a Grécia convulsionada por uma ditadura militar. A ideia surgiu depois de levar um susto com tiros disparados pela polícia contra estudantes nas ruas de Atenas. Naquele instante, foi obrigado a se esconder detrás de “uma coluna que nem grega era”, como relatou.
A principal obra inacabada é A HORA DO SÉTIMO ANJO sobre um homem que observa as pessoas em seu próprio enterro e tenta acompanhar suas histórias de vida. Segundo Maria da Glória, “alguns personagens e situações ele acabou usando em INCIDENTE EM ANTARES, o que o deixou meio desbaratado, sem saber o que fazer”.
UM ESCRITOR SEM FRONTEIRAS
A visão crítica sobre a realidade brasileira na obra de Erico Veríssimo ganhou sofisticação e profundidade em 1971 com INCIDENTE EM ANTARES, em meio ao boom do realismo fantástico de autores latino-americanos como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. É a história de defuntos que, privados do enterro por causa de uma greve de coveiros, se erguem dos caixões e passam a perambular pela cidade. Há quem diga que se trata de uma versão fantástica de O TEMPO E O VENTO, como lembra Luis Fernando Verissimo. Erico, contudo, não gostava do termo fantástico. Dizia que era impossível esse elemento se encastelar nas colinas de Petrópolis (bairro onde morava em Porto Alegre), bem mais suaves que as andinas. “Preferia a ideia de absurdo, daquilo que não faz sentido”, pondera a professora Maria da Glória Bordini.
Segundo Regina Zilberman, INCIDENTE EM ANTARES preserva atualidade graças ao caráter metafórico, que abrange até uma versão antecipatória de fake news: com os mortos finalmente sepultados, as autoridades propõem que se apague o episódio da memória dos habitantes de Antares. “Igualmente, hoje não conseguimos enterrar o passado, que nos aterroriza. E, como no livro, a solução parece ser uma ‘operação borracha’”, compara a professora da UFRGS. No auge do regime militar, Erico usou macetes para ludibriar A censura. A ação se desenvolve em um único dia, 13 de dezembro de 1963, mas, conforme Regina, a data é uma alusão ao 13 de dezembro de 1968, dia da edição do AI-5, o início do período mais duro do regime militar: “É uma jogada esperta de Erico, que possibilita referir a fase mais aguda de restrição à liberdade”.
A coragem de se posicionar não implicava, porém, alinhamento automático com bandeiras partidárias, o que lhe causava atritos também com a esquerda. Embora comungasse dos ideais sociais de colegas como Jorge Amado e Graciliano Ramos, que se filiaram ao Partido Comunista, Erico condenava com veemência o viés autoritário da ex-União Soviética. Fora isso, advertia que não cabia ao ficcionista resolver em seus livros os problemas políticos, sociais e econômicos: “Concordo com Arthur Koestler (escritor judeu nascido em Budapeste, na Hungria) quando ele diz que o romancista não deve oferecer remédios para os males sociais, mas sim mostrar que o organismo social está doente, criando desse modo ‘a necessidade de curá-lo’”, afirmou o escritor gaúcho.
Nos anos 1940, quando passou a dar palestras em universidades norte-americanas (o relato da experiência está em GATO PRETO EM CAMPO DE NEVE e A VOLTA DO GATO PRETO), Erico Verissimo aguçou a desconfiança da esquerda a ponto de ter a participação vetada no I Congresso Brasileiro de Escritores, em 1945, fato que o magoou profundamente. “Como enfatizava o seu humanismo democrático quando muitos intelectuais brasileiros seguiam a ortodoxia comunista, teve alguns desentendimentos, inclusive com Jorge Amado, de quem sempre foi amigo”, relembra Luis Fernando.
Em contraposição, os conservadores não lhe davam trégua. Em 1943, o padre Leonardo Fritzen escreveu artigo para O ECHO, órgão de circulação interna do Colégio Anchieta, denunciando a “imoralidade” do romance O RESTO É SILÊNCIO – em resposta, Erico moveu-lhe uma queixa crime por se sentir atingido moralmente. Para a professora Regina Zilberman, os dissabores trazidos por ataques à direita e à esquerda contribuíram para que Erico aceitasse o convite para assumir a direção do Departamento de Assuntos |Culturais da União Pan-Americana, em Washington, afastando-se do país de 1953 a 1956.
A trajetória no exterior ajudou a fazer de Erico um dos primeiros autores brasileiros a ambientar romances no estrangeiro, como destacou Carlos Minchillo, em Erico Verissimo, escritor do mundo: cosmopolitismo e relações interamericanas, tese de doutorado de Literatura Brasileira da USP, em 2013. “Um raro precedente é RIACHO DOCE (1939), de José Lins do Rego, que narra a vida de uma personagem na Suécia antes de ela se mudar para o Brasil”, aponta Minchillo, hoje professor do Dartmouth College, em New Hampshire, nos Estados Unidos.
Chama atenção que, ao transferir para fora do Brasil o cenário de seus romances, Erico não foge à obrigação de contar as histórias com detalhes. Em SAGA, descreve as atrocidades da guerra civil espanhola com base nos diários de campanha do brasileiro Homero Jobim, que participou dos combates. Já em O SENHOR EMBAIXADOR, reflete sobre os dilemas dos intelectuais latino-americanos frente ao colonialismo americano. “Para escrever este livro, estudei fauna, flora e arqueologia da América Central. Quis fazer um país (a história se passa na república fictícia de Sacramento) em que eu acreditasse para depois convencer o leitor de sua existência”, contou Erico.
OBRA COMPLETA
ACERVO PRESERVADO NO RIO DE JANEIRO
O acervo de Erico Verissimo, com originais, esboços, correspondências, artigos e anotações encontra-se hoje no Instituto Moreira Salle, no Rio de Janeiro – em 2019, a concessão foi renovada por mais 10 anos. Na década passada, a família cogitou guarda-lo no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo, na capital gaúcha, mas recuou devido à falta de garantias de que não haveria ingerências sobre o funcionamento do memorial. “Governos mudam em quatro anos e cada um tem uma ideia a respeito das coisas. A solução de deixa-lo no IMS foi a melhor até mesmo em função das condições técnicas para a preservação do material”, diz Maria da Glória Bordini, que continua prestando auxílio à família na divulgação do patrimônio literário de Erico Verissimo.
https://www.youtube.com/watch?v=A3TjTxDEmdg
Fonte: Jornal do Comércio/Caderno Viver/Paulo César Teixeira/Jornalista, autor dos livros: Esquina Maldita e Darcy Alves – A Vida nas Cordas do Violão, entre outros, além de editar o portal Rua da Margem (www.ruadamargem.com) em 22/09/19