CONTOS PARA CHARLES DARWIN
Em RESERVA NATURAL, Rodrigo Lacerda sugere que só a teoria da evolução pode explicar certas idiossincrasias humanas.
De uns dez anos para cá, Rodrigo Lacerda não tira Charles Darwin (1809-1882) da cabeça. Autor de livros elogiados como O FAZEDOR DE VELHOS, de 2008, com o qual venceu o prêmio Jabuti de melhor livro infantil, entre outros, o escritor tem refletido, por exemplo, sobre a ação no nosso cérebro dos neurotransmissores, do qual não temos nenhum controle. Com uma injeção de dopamina nos sentimos bem e felizes. Já uma descarga de adrenalina nos deixa alertas e ativos. E por aí vai.
O fato de preferirmos pagar uma quantia quebrada, como R$ 5,99 em vez de R$ 6,00, é mais um ponto de partida para suas reflexões darwinianas. Assim como a desenfreada reprodução humana, irracional se observada a quantidade de habitantes no planeta e os recursos naturais disponíveis. “Como a maioria das pessoas da minha geração, cresci enxergando o mundo pelas óticas marxista e freudiana”, afirma Lacerda, que se pôs a refletir cada vez mais sobre a teoria evolutiva proposta pelo naturalista britânico. “A humanidade parece ter se esquecido dos diversos imperativos biológicos que incidem sobre nosso comportamento e que talvez sejam incontornáveis”, diz o escritor.
Essa reflexão toda deu origem a RESERVA NATURAL (Companhia das Letras, 183 páginas), previsto para chegar às prateleiras nas próximas semanas. Dividido em duas partes, Território e Fauna, o livro reúne dez contos. Todos sugerem que só a teoria da evolução pode explicar determinados fatos científicos e certas idiossincrasias humanas.
Como abrir mão dela para compreender a coincidência de sermos, assim como os ratos, hospedeiros intermediários do vírus da toxoplasmose, como se aprende em “Metástase”, o último conto do livro? O vírus torna os roedores incapazes de sentir o cheiro da urina dos gatos, os verdadeiros alvos do organismo infeccioso. Contaminados por ele, sustentam alguns pesquisadores, os humanos se mostram mais inconsequentes, exaltados e indiferentes ao risco. A hipótese para explicar a coincidência, já que não somos presas de gatos, o que justificaria a ação do vírus no nosso organismo, é a seguinte: ele teria sobrevivido desde a pré-história, quando nossos antepassados eram devorados por tigres dentes-de-sabre e outros antepassados dos inofensivos bichanos de hoje em dia. O conto que dá título ao livro foi publicado originalmente numa edição da revista inglesa “Granta”, em 2010.
A ciência é um campo caro ao autor, que integra o conselho da Zahar e ajuda na seleção dos livros de biologia, física e matemática, entre outras disciplinas do gênero, publicados pela editora. Em seu romance A REPÚBLICA DAS ABELHAS, de 2013, a certa altura ele descreve como os insetos tomam suas decisões políticas. Na sua segunda obra, de 1996, intitulada A DINÂMICA DAS LARVAS: COMÉDIA TRÁGICO-FARSESCA, Lacerda expõe como se estrutura a organização de determinado tipo de larva.
Rodrigo Lacerda nasceu no Rio de Janeiro 50 anos atrás e cresceu em um edifício em Ipanema projetado pelo arquiteto modernista Paulo Casé. Apelidado de Estrela de Ipanema, o famoso prédio é o endereço de um dos personagens do romance VISTA DO RIO, lançado pelo escritor em 2004. (Publicado cinco anos depois, o romance OUTRA VIDA, vice-campeão do prêmio Portugal Telecom, está sendo reeditado pela Companhia das Letras e chega às livrarias neste mês).
O romancista é o segundo filho do editor Sebastião Lacerda, que nos anos 1970 assumiu com o pai dele o controle da editora Nova Aguilar, depois associada à Nova Fronteira. Do avô paterno o escritor guarda na memória a voz grossa, que o enchia de medo, e uma intensa atividade até o fim da vida. Viajante frequente, o avô tinha como hábito recepcionar toda a família e uma porção de amigos sempre que votava para casa. Invariavelmente com presente para todos. “Eu me espanto em imaginar que ele passava as viagens pensando em comprar presentes para os outros”, diz Rodrigo Lacerda. “Denota uma generosidade grande dele, mas também algo de comprador compulsivo.” O avô era o jornalista e político Carlos Lacerda (1914-1977).
É sobre a trajetória dele que o romancista escreve, com a ajuda da ficção, em A REPÚBLICA DAS ABELHAS. A obra também rememora a vida do pai do jornalista, de seus tios e de um avô, todos eles protagonistas de lances decisivos da política brasileira. Foi graças ao livro que o autor pôde conhecer a fundo o avô, morto quando ele tinha 9 anos. “Ele não era exatamente a figura furiosa que criou para a vida pública”, afirma. “Agia assim, pois dizia considerar o Brasil aquele sujeito que dormiu completamente de porre às 4h da manhã e precisa acordar às 6h para pegar o avião. Se cabe a você acordá-lo, não dá para ser com festinha ou ele perde o voo. É preciso dar umas bofetadas.”
Aos 12 anos, Rodrigo Lacerda teve um encontro transformador. Foi quando o pai lhe apresentou o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro (1941-2014). “Achava impossível alguém ser ao mesmo tempo erudito e divertido”, diz Lacerda, que acabou seduzido pela literatura. Aos 17 anos, outra apresentação marcante, desta vez ao poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999). “Ele confessou que ‘Auto do Frade’ e ‘Morte e Vida Severina’, os livros dele que eu preferia, eram os que menos gostava”, diz.
Bem naquela época, Lacerda debutou no mercado editorial. Primeiro-anista do curso de história da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), foi convocado pelo pai a ajudar na pesquisa de um dicionário de nomes, termos e instituições históricas. Coube a ele vasculhar os acervos da Biblioteca Nacional, do Arquivo nacional e dos jornais da época e redigir os verbetes a respeito dos movimentos artísticos.
Em São Paulo, para onde se mudou em seguida e concluiu a graduação, na Universidade de São Paulo (USP), deu início a uma carreira paralela como editor de livros. Começou na editora da universidade, a Edusp, e, depois de um ano atuando na assessoria de imprensa do governador Mário Covas (1930-2001), passou para a extinta Cosac Naify. Na editora de Charles Cosac, com quem ele estudou, algumas séries abaixo, no tradicional Colégio Andrews, no Rio de Janeiro, Lacerda ficou seis anos. Saiu para comandar as publicações do Instituto Moreira Salles.
No meio tempo, especializou-se como tradutor. Verteu para o português tanto obras pop como AS AVENTURAS DO CAPITÃO CUECA até clássicos como OS TRÊS MOSQUETEIROS e CONDE DE MONTE CRISTO, de Alexandre Dumas (1802-1870), os últimos em parceria com o tradutor André Telles. Para essa evolução o autor até hoje não tem explicação.
Fonte: Revista Valor/Daniel Salles em 23/02/2018.