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Grande Sertão Veredas: Traduzido para o Inglês
Grande Sertão Veredas: Traduzido para o Inglês

GUIMARÃES ROSA REVISITADO

 

Entrevista: Alison Entrekin / tradutora australiana que verterá o GRANDE SERTÃO VEREDAS para o inglês.

 

É UM TRABALHO DE RECONSTRUÇÃO, DE RECRIAÇÃO”.

 

A tradutora australiana Alison Entrekin, há 20 anos radicada no Brasil, já verteu para o inglês obras como CIDADE DE DEUS, de Paulo Lins; BUDAPESTE, de Chico Buarque; BARBA ENSOPADA DE SANGUE, de Daniel Galera, e O FILHO ETERNO, de Cristóvão Tezza. O maior desafio da carreira surgiu há alguns anos quando a agência literária que representa a obra GRANDE SERTÃO VEREDAS, de João Guimarães Rosa, a procurou para ver se ela estava interessada em traduzir para o inglês a obra do autor mineiro, morto em 1967. Uma única tradução direta do português para o inglês é que se tinha registro: “The Devil to Pay in the Backlands”, publicada nos Estados Unidos em 1963. Entre as excrescências da tradução, que caiu logo no esquecimento, estava a transformação de Riobaldo em um caubói, bem à maneira norte-americana. Mapeada do Conexões Itaú Cultural. Alison começou a conversar com a instituição sobre a possibilidade de um apoio para esta tradução cujo tempo para um trabalho mais elaborado duraria não menos do que três anos. Até que no final do ano passado, foi assinado um contrato para apoiar a tradutora, que terá três anos para fazer este hercúleo trabalho. Nesta entrevista concedida ao Caderno de Sábado, Allison Entrekin, fala das dificuldades, métodos, conceitos de tradução literária, além de políticas públicas e com instituições governamentais para apoio à tradução literária.

 

 

Como foi que você se colocou nesta empreitada para traduzir GRADE SERTÃO VEREDAS do português para o inglês?

Não é a primeira direta da história. Já foi feita uma tradução para o inglês, “The Devil to Pay in the Backlands”, publicada nos Estados Unidos em 1963. Mas essa tradução nunca passou da primeira tiragem e logo caiu em esquecimento. Ela não reproduz as particularidades da narração e é escrita num inglês padrão, menos colorido e idiossincrático. Há alguns anos, a agência literária que representa a obra entrou em contato comigo para perguntar se estaria interessada em fazer uma nova tradução. Mas, para falar a verdade, apesar do meu interesse, eu duvidava que conseguiria o apoio necessário para levar adiante o projeto. Não é uma tradução no sentido mais tradicional da palavra. É mais um trabalho de reconstrução ou recriação, uma vez que não há traduções prontas e dicionarizadas para neologismos, nem para a sintaxe peculiar do Riobaldo. É um processo meticuloso, que requer muita pesquisa e imersão, sem contar o tempo que se leva para criar um novo dialeto em inglês para dar conta daquele que o Guimarães Rosa criou em Português. Passei alguns anos tentando conseguir algum tipo de apoio pelos meios mais tradicionais, e estava quase desistindo quando o Itaú Cultural resolveu abraçar o projeto, permitindo que eu me dedicasse em tempo integral à tradução.

 

 

Você se coloca no grupo que defende a recriação, a autoralidade do trabalho tradutório ou no grupo que defende uma maior fidelidade ao texto original (Existem defensores de um e outro, como é o caso de Rosemary Arrojo e Paulo Henriques Britto, respectivamente)?

Para mim, não existe uma única resposta a essa pergunta: cada tradução dita as próprias regras. Tem casos em que não faz sentido desviar do que está escrito no original, porque a língua de partida e a de chegada se comportam da mesma maneira e a mensagem e o estilo são os mesmos. Outros textos são completamente diferentes, como é o caso de GRANDE SERTÃO: VEREDAS. Às vezes é necessário ser radicalmente infiel para ser minimamente fiel – na recriação de uma piada ou de um trocadilho, por exemplo.

 

 

Como vai funcionar o processo de tradução do livro de Guimarães Rosa? Tempo, métodos, equipe, apoio?

O apoio do Itaú Cultural é por três anos, e, neste primeiro momento, estou trabalhando de forma mais intensa com a minha colega e consultora principal, Daniela Travaglini, com quem discuto cada detalhe (literalmente cada detalhe) do primeiro rascunho da tradução que venho fazendo. Estou debruçada sobre a fortuna crítica, lendo as anotações do Rosa em seus cadernos, as correspondências que ele trocou com os tradutores originais, nos anos 1950 e 60, teses, ensaios, a marginália da Dirce Riedel, professora catedrática da UERJ. Consulto “O Léxico de Guimarães Rosa”, da Nilce Sant’Anna Martins, o tempo todo, e dou uma espiada nas versões do livro em espanhol e italiano de vez em quando para ver se lançam alguma luz sobre a interpretação de algo particularmente intrincado. Também tenho lido obras em inglês que desviam do discurso padrão, em busca de inspiração e para viver permanentemente em contato com outras falas, outros dialetos. É quase como se fossem aulas diárias de “yoga mental” para me manter linguisticamente flexível. Fiquei extasiada recentemente relendo a peça “Under Milk Wood” do poeta Dylan Thomas, uma das coisas mais lindas já escritas em língua inglesa. Agora estou me deliciando com a releitura de Adventures pf Huckleberry Finn, primeiro publicado em 1884, narrado num dialeto arcaico do inglês para lá de pitoresco. A equipe consiste basicamente de eu, a Daniela e o Sérgio Montero, meu professor de literatura. Mas vou acabar consultando muitos outros especialistas ao longo do processo. Mais para a frente, vou ter feedback dos editores, que são os primeiros leitores da nova versão. Essa etapa é muito importante. E quando tenho que fazer ajustes, rever detalhes – ou bater o pé e defender algo até a morte.

 

 

Como você trabalha as questões específicas de áreas muito técnicas, um médico, um engenheiro, na tradução e também com gírias, expressões antigas, dialetos e regionalismos?

Com muita pesquisa. O tradutor é uma espécie de intérprete; ele tem que pesquisar os termos técnicos, as gírias também, e da rum mergulho profundo no universo do livro para poder recriar a voz e o estilo da narração. Mas algumas coisas não têm uma tradução direta e reta, como é o caso de um dialeto regional. Por mais que um brasileiro consiga identificar no papel a fala de um mineiro, um gaúcho ou um baiano, essas diferenças são impossíveis de reproduzir na tradução. É possível acertar o registro – coloquial ou formal – e outras nuances, mas não o dialeto em si. Um dialeto é algo único, ligado a um único lugar; não se pode substituir um dialeto por qualquer outro, pois este remeteria ao lugar de onde vem. A salvação da pátria, no caso de GRANDE SERTÃO: VEREDAS, é que Rosa misturou coisas garimpadas com coisas que ele mesmo inventou, no estilo da fala do Sertão Mineiro. Assim eu também posso garimpar e reinventar na recriação do livro. Não no enredo, obviamente, mas na linguagem.

 

 

E a respeito do trabalho do mapeamento feito pelo Itaú Cultural com o Conexões, qual a sua opinião?

O mapeamento da literatura brasileira no exterior e o Conexões são programas fantásticos, e acredito que tenham aumentado o intercâmbio entre brasilianistas ao redor do mundo. Pelo menos foi o meu caso. O palco que o Conexões dá para o papel do tradutor, entre outros profissionais envolvidos na disseminação da literatura brasileira lá fora, é fundamental. Ajuda a lançar luz sobre a importância do tradutor na cadeia do livro e a valorizar a profissão, tradicionalmente negligenciada e mal-paga, que necessita de maior reconhecimento e remuneração para que as pessoas realmente talentosas permaneçam na área.

 

 

Outra pergunta sempre importante é sobre os apoios à tradução, sabemos que o Brasil tem oda Fundação Biblioteca Nacional, mas ainda não há um instituto ou um organismo para se dedicar ao tema, como temos o Cervantes e Goethe para Espanha e Alemanha. O que está faltando para que o Brasil figure no mapa dos países que efetivamente apoiam a tradução literária?

Os programas de apoio da Biblioteca Nacional e outras iniciativas são importantes, mas faz falta uma instituição no Brasil como o Instituto Cervantes, da Espanha, o de Portugal, dedicada à promoção da cultura brasileira no exterior. Os países cujos livros circulam em maior número no exterior são justamente aqueles com institutos culturais e linguísticos estáveis, cujos programas e níveis de apoio não variam de um ano para outro. O Brasil tem vivido booms, impulsionados em grande parte por eventos como homenagens nas grandes feiras de livros e as olimpíadas. Mas o investimento cultural não deve ser atrelado a esses momentos e estagnar nos anos intervenientes. A consistência é fundamental.

 

 

Como você define a importância do tradutor literário para a difusão da literatura?

Uma tradução malfeita é um tiro no pé para um livro e seu autor. No caso de Franz Kafka e Simone de Beauvoir, algumas de suas primeiras traduções para o inglês promoveram visões equivocadas de seus livros por décadas. É até preferível que o livro caia em esquecimento num caso desses, a exemplo de “The Devil to Pay in the Backlands” em inglês, que só vai ganhar uma nova versão quase seis décadas depois.

 

Fonte: Correio do Povo/CS/Luiz Gonzaga Lopes em 03/02/2018.