CLAREZA DO LUGAR ESCURO DE HELOÍSA SEIXAS
Para o teórico francês Serge Doubrovsky, a autoficção não pode retratar de forma fidedigna o que foi experienciado. “Nenhuma escrita autobiográfica pode ser o retrato fiel do vivido, pois a vida é vivida no corpo; o outro é um texto”, afirma Doubrovsky. No caso da escritora carioca Heloísa Seixas, este conceito parece não ser totalmente verdadeiro. Quando ela escreve sobre as coisas pelas quais passou, a verdade está lá, permeando, aprofundando temas como a morte que ronda o marido Ruy Castro (O OITAVO SELO) ou o mal de Alzheimer que transformou sua mãe na doente que encontra o avesso de si mesmo (O LUGAR ESCURO). Sobre este livro lançado em 2007 pela Objetiva que tratamos com Heloísa em entrevista publicada a seguir.
O tema é pertinente, pois após montagem carioca do texto literário adaptado ao teatro pela própria Heloísa, O LUGAR ESCURO ganha montagem gaúcha, dirigida por Luciano Alabarse, com atuações de Sandra Dani, Vika Schabbach e Gabriela Poester. A estreia foi sexta, no Instituto Goethe. A peça segue até 10 de abril, de sextas a domingos.
Sobre a adaptação do livro, Luciano revela: “Seu trabalho como adaptadora é pensado para a cena, seu comprometimento mira o palco: cenas curtas e densas, quebras temporais e solilóquios sensíveis permeiam o espetáculo. Estamos diante de um texto que atinge todos nós. Peça para grandes atrizes, para quem não tem medo de emoções profundas”.
Na entrevista para o Caderno de Sábado, Heloísa ressalta que “nas palestras, nas ruas, em toda parte, as pessoas vinham falar do livro com emoção. Muitas dessas pessoas batiam na mesma tecla: elas me agradeciam por eu ter tido a coragem de falar da minha raiva, da minha revolta, por não ter querido fazer o papel da filha boazinha, por confessar minha fraqueza diante daquela situação terrível. Foi uma tempestade emocional. A partir daí que eu tive a ideia de adaptar para o teatro. Fiquei imaginando como seria se aquelas histórias estivessem sendo faladas, por pessoas de carne e osso”.
Heloísa que é casada há 25 anos com Ruy Castro, estreou na literatura em 1995 com o livro de contos PENTE DE VÊNUS, editado pela gaúcha Sulina. Com a obra, foi finalista do Jabuti. Depois foram mais de duas dezenas de livros de contos, romances, crônicas, matérias jornalísticas, relatos de viagem, literatura juvenil e infantil. Sobre O LUGAR ESCURO, ela destaca que tanto o livro quanto a peça mostraram que a obra não trata só de Alzheimer, “mas de relações familiares, entre mãe e filha, ciúme entre irmãos, questões que dizem respeito a todos. Ao final da peça, muita gente disse: ‘Não tenho ninguém com Alzheimer na família, mas me identifiquei muito’. Foi gratificante para mim”.
ENTREVISTA: A CLARA PROSA DE HELOÍSA
Em algum lugar das narrativas de Heloísa Seixas, as histórias são vividas, pulsantes, são feitas da matéria da vida, com as suas angústias, dores e experiências de tanger a morte. Nesta semana, estreou n o Teatro do Instituto Goethe o espetáculo O LUGAR ESCURO, adaptado pela própria autora para o teatro e que após montagem carioca recebe o dedo do diretor porto-alegrense Luciano Alabarse. O livro Homônimo foi lançado pela Objetiva em 2007 e trata do mal de Alzheimer da mãe de Heloísa como um tratado sobre as relações familiares, que podem sobreviver ou se degradar por fatores circunstanciais ou grandes tragédias. Na montagem de Alabarse, o elenco é formado por Sandra Dani, Vika Schabbach e Gabriela Poester, com temporada até 10 de abril.
Heloisa Seixas nasceu em 1952, no Rio de Janeiro. Vive no Leblon desde os 7 anos de idade. Formada em Jornalismo em 1974, pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou como jornalista e tradutora durante quase duas décadas até encontrar a sua narradora, a sua voz literária, a sua clara prosa ou deparar-se com o universo desta frase que abre, epigraficamente, o livro O LUGAR ESCURO: “O escritor é um condenado, cuja alma é exposta em praça pública como o corpo de um traidor.” Seu primeiro livro, PENTE DE VÊNUS (contos), publicado em 1995 pela editora gaúcha Sulina, foi finalista do Prêmio Jabuti. Desde então, lançou mais de duas dezenas de livros, oi outras duas vezes finalista do jabuti (com os romances A PORTA e PÉROLAS ABSOLUTAS) e sua produção inclui ainda crônicas, matérias jornalísticas, literatura juvenil e infantil e peças de teatro. Seu livro mais recente é O OITAVO SELO – Um Quase Romance (Cosac Naify, 2014), uma mistura de ficção e realidade, na qual narra os selos de morte que rondaram o marido Ruy Castro, com o qual é casada há 25 anos. Nesta entrevista, ela fala sobre o livro que virou peça, sobre o tema, sobre literatura contemporânea, outras obras suas e a parceria com Ruy castro.
Em primeiro lugar, queria te perguntar como foi adaptar o livro O LUGAR ESCURO para um espetáculo teatral?
Eu escrevi O LUGAR ESCURO em 2007 e, de início, não sabia nem se ia publicar. Fiz mais como um desabafo. Mas o livro acabou saindo e, quando saiu, me surpreendeu. Nas palestras de que eu participava, nas ruas, em toda parte, as pessoas vinham me falar do livro com muita emoção. E muitas, muitas dessas pessoas batiam na mesma tecla: todas me agradeciam por eu ter tido a coragem de falar da minha raiva, da minha revolta. Por eu não ter querido fazer o papel da filha boazinha, por ter confessado minha fraqueza diante daquela situação tão terrível. Foi uma verdadeira tempestade emocional. E foi a partir daí que eu tive a ideia de adaptar para o teatro. Fiquei imaginando como seria se aquelas histórias estivessem sendo faladas, por pessoas de carne e osso. Sabia que o impacto seria grande. E, pelo que vivemos na primeira montagem, no Rio, tenho certeza de que não me enganei.
O que o tema do Alzheimer da tua mãe ainda causa em ti?
O tema me ensinou muito. Através da experiência que vivi, e através do livro e do teatro. Acho que a doença me proporcionou uma trajetória que foi da raiva à compaixão. A convivência com tudo isso me fez descobrir um amor pela minha mãe que eu não sabia que sentia, uma coisa muito forte. A raiva, o medo da morte, todos os sentimentos ruins se diluíram. É incrível isso, as experiências terríveis se suavizam depois que eu escrevo sobre elas. É por isso que eu escrevo: assim que ancoro as coisas no papel, quebra-se o encanto, o pavor desaparece.
Como está sendo a experiência de ser montada por Luciano Alabarse?
Estou encantada com tudo. Não acompanhei nada, tudo para mim será surpresa (estou chegando a Porto Alegre no próprio dia da estreia) e isso é uma coisa nova para mim. Até hoje, em todas as minhas experiências com teatro, sempre acompanhei as montagens das minhas peças desde o início. Agora é diferente. Mas sei, pela qualidade do Luciano e de todos que trabalham com ele, pela força das atrizes, por tudo, que vai ser espetacular. Por tudo o que tenho percebido, vai ser um trabalho lindo. Estou curiosa e feliz.
Para citar uma das grandes escritoras brasileiras da atualidade, Elvira Vigna, que diz que “Para fazer literatura você tem de ser terrivelmente sincero. E é incrível: se você atinge a verdade, está fazendo ficção, que é mentira”, como é a tua relação com a tua ficção, que normalmente é baseada na verdade do vivido?
Eu, pessoalmente, só escrevo sobre o que me assombra. Ou fascina. Não faço concessões. Tudo o que escrevo é, num certo sentido, autobiográfico. Porque fantasia também é biografia. Isso que a Elvira disse é perfeito: voc~e não pode trapacear. Só pode escrever aquilo que, dentro de você, pede para ser escrito. Tem de ser uma relação muito verdadeira, caso contrário, você vendeu a alma ao demônio. Quando o escritor se senta para escrever tem de ser, como eu já disse um dia, ele e sua pena (nos dois sentidos da palavra) – mais nada.
Em O OITAVO SELO, que chamou tanta atenção de Luciano, todos nós nos surpreendemos com a capacidade mais do que Bergmaniana de Ruy Castro em jogar muitas e muitas partidas com a morte, superar câncer, álcool, drogas, infarto, queria que você falasse do processo de feitura deste livro.
Os confrontos do Ruy com a morte, e a maneira leve que ele teve ao lidar com isso, sempre chamaram minha atenção. Mas não pensava em escrever sobre isso. Até que um dia uma editora amiga minha me falou sobre uma coleção que ela estava pensando em organizar, sobre mitos eróticos. E, ao falar no assunto, ela citou a Sherazade. Aí eu pensei no Ruy. Pensei: é isso, é a mesma coisa. Assim com ela, ele escreve (ou conta histórias) para não morrer. Começou assim. Eu dei um tratamento ficcional (quase romance), mas nunca escondi que era completamente baseado nele – e em mim. Porque a partir de um dado momento eu entro na história. E aí aconteceu uma coisa interessante: eu descobri que Sherazade também sou eu. Porque eu também estava escrevendo aquele livro (assim como O LUGAR ESCURO, e talvez todos os outros) para espantar o medo da morte.
Outro livro que tive a felicidade de ler foi TERRAMAREAR, pois sou um viajante não tão contumaz como vocês, mas fui a Moscou e São Petersburgo, por causa de Tchekhov e Dostoievsky. Por que este livro é tão especial e cativa tantos leitores?
Esse foi um livro delicioso de fazer. Ruy e eu nos demos conta de que tínhamos muitos textos, feitos ao longo de 30 anos, sobre viagens, sobre lugares. Viagens que fizemos juntos ou separados (quando nem nos conhecíamos), a passeio ou a trabalho. E descobrimos também que tínhamos muitas histórias que gostaríamos de escrever, novos textos sobre lugares onde já estivemos. Como somos viajantes que gostamos de conhecer a alma dos lugares, de descobrir segredos, de fazer roteiros que remetam a filmes ou a livros, acabamos chegando a essa ideia de “turistas culturais”. Deu certo. Muita gente viaja com o livro no bolso e sai procurando os lugares. É divertido.
Queria que tu opinasse sobre a literatura brasileira contemporânea. O que gostas e desgostas?
Sou uma pessoa muito aberta, capaz de ler quase tudo que me cai nas mãos. Um exemplo de literatura contemporânea brasileira boa, um livro que li recentemente e adorei: “Jeito de Matar lagartas”, do Antonio Carlos Viana. Mas tenho de confessar que minha grande paixão é a literatura do século XIX, principalmente de língua inglesa. Para mim, foi o momento insuperável da literatura.
Por fim, uma pergunta sempre reincidente no nosso humilde, mas sempre insistente bairrismo: como é a tua relação com o Rio Grande do Sul?
Tenho enorme admiração pelo peso que a leitura, o livro, a cultura em geral têm no Rio Grande do Sul. Feiras como a de Porto Alegre e a de Passo Fundo (que infelizmente no ano passado não pôde se realizar), tão tradicionais, são provas disso. A literatura gaúcha tem uma força extraordinária. Isso, em um país como o nosso, é admirável. Agora, vou contar uma coisa que pouca gente sabe: quando eu publiquei meu primeiro livro, de contos, PENTE DE VÊNUS, ele saiu por uma editora gaúcha, a Sulina. Minha primeira casa foi aqui. Não é especial isso? E os gaúchos me deram sorte porque já no primeiro livro eu fui finalista do Jabuti!
ALABARSE MONTA O LUGAR ESCURO
Heloisa Seixas adaptou para o teatro o texto de O LUGAR ESCURO, reunindo três gerações de mulheres da mesma família que se deparam com o mal de Alzheimer, do qual sofre a figura mais velha. As três lidam com a doença ao acompanhar o cotidiano da avó que passa a sofrer com as mudanças de personalidade, temperamento e mexe a vida de todas. O espetáculo O LUGAR ESCURO tem direção de Luciano Alabarse e elenco formado pelas atrizes Sandra Dani (avó). Vika Schabbach (mãe) e Gabriela Poester (neta). Estreou em janeiro, em Recife, no Janeiro de Grandes Espetáculos. Sobre o primeiro contato com a obra de Heloísa Seixas, Luciano diz: “Aconteceu por curiosidade. Li nota de jornal anunciando o lançamento de O OITAVO SELO, um quase romance na definição da autora. Aquele “quase” aguçou meu desejo de ler o livro. Transformados ali em personagens ficcionais, o casal Heloísa Seixas e Ruy castro mergulha, de forma incisiva, em experiências de dor, doença e superação. A referência ao título do filme bergmaniano, claro, não é por acaso. O livro é arrebatador. Surpreso com a qualidade da obra, busquei a obra inteira da escritora. E foi aí que descobri o livro.”
Em artigo para o Caderno de Sábado, em janeiro, Luciano dá pistas do arrebatamento pelo qual ele foi tomado ao ler a obra e a adaptação: “O livro é dilacerante e comovente, construído também a partir de sua experiência pessoal. mais uma vez, Heloísa demonstra a possibilidade de transcendência através da arte e da escrita. Ao relatar a vida de uma mulher nominada simplesmente assim, Mulher, e seu necessário enfrentamento ao Alzheimer da própria mãe, com dificuldades familiares que afloram e machucam, o livro é um relato singular e transformador. A loucura está presente em todos os movimentos que norteiam as difíceis decisões da personagem central. O eixo familiar é completado com a matriarca da família, a Avó, e com a caçula da família, a Neta. Mulheres inominadas, fascinadas com os diferentes porões da alma humana, onde o pertencimento, social e familiar, tem na palavra o papel central...”.
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Luiz Gonzaga Lopes em 12 de março de 2016.