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Pensando um País — [6] A Cordialidade Ontem e Hoje
Pensando um País — [6] A Cordialidade Ontem e Hoje

PENSANDO UM PAÍS – PARTE 6

 

A CORDIALIDADE DE ONTEM E DE HOJE.

 

Em 1936, na abertura da coleção Documentos Brasileiros, Sérgio Buarque de Holanda intitulava o capítulo V de Raízes do Brasil, de “O Homem cordial”.  Encontrara a expressão no escritor e amigo Ribeiro Couto.  Ao longo do capítulo, explicava que a expressão nos caracterizava, como “um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente do ninho familiar”, pois “as relações que se criaram na vida doméstica, sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós”.

 

As passagens citadas são imprescindíveis porque (a) muitos dos comentadores do autor não hesitaram em considera-lo prova que o depois celebrado historiador estaria enfatizando um dado altamente positivo de nossa formação; (b) na verdade, a cordialidade tinha o papel de ressaltar a rígida separação, em nossa sociedade, entre o público e o privado.  O autor não deixava dúvidas sobre sua consequência negativa; “Armado desta máscara (a cordialidade) o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social”.  Fundada nas relações familiares de que derivava, a cordialidade se estendia até a área do público, cuja lógica, que antes deveria ser o interesse público, era com isso sufocada; (c) a distinção se tornará mais efetiva a partir da 3ª edição do Raízes (1956), quando ao texto sensivelmente modificado corresponderá o esclarecimento decisivo sobre a qualidade da cordialidade.

  

Tal esclarecimento se tornara necessário desde que Cassiano Ricardo iniciara seu desentendimento, tornando-a como sinônimo da nossa  bondade (!).  Contrapondo-se-lhe, Sérgio Buarque, ainda que reiterasse em nota seu débito a Ribeiro Couto, acrescentava passagem de O Conceito do Político, que Carl Schmitt publicara em 1933, lido no original.  Aí, de maneira inquestionável era diferenciada a inimizade, pertencente à ordem do privado, assim como a hostilidade, propriedade da ordem do público.

 

O texto revisto tirava qualquer possibilidade de dúvida;  Sérgio Buarque acentuava que nossas raízes familiares comprometiam a formação consequente de uma ordem pública entre nós, por seus agentes, no exercício de seus cargos, agem como se a população fosse parte do círculo de seus apaniguados.

  

O esclarecimento acima se mostra particularmente pertinente neste dia da Independência.  Por quê?  Seria um desperdício alegar que assim sucedia porque Sérgio Buarque é um intelectual a que poucos entre nós se igualam.  Seu propósito é bem outro.  Trata-se de mostrar que o termo, em vez de manter a estrita acepção inicial – a oposição entre o público e o privado, a hostilidade versus a manifestação de inimizade como derivadas da importância primordial da instituição familiar – passa a ter outra configuração.  Para melhor entende-lo, recordemos que, nos termos do autor, a oposição entre público e privado significa que nossa política, sob uma capa de afabilidade, acobertava interesses privados.  Mas tal acepção ainda vigora depois do golpe de 1964?  Embora a delação, a tortura, o desaparecimento dos adversários, já houvessem sido praticados durante o Estado Novo, ainda se poderia supor que a indiferença e a progressiva hostilidade da população pelo clima de terror indicavam alguma permanência da velha cordialidade.

 

Já o que se dá em consequência do resultado da última eleição presidencial não mais permite dúvidas.  Em vez do adversário político ser hostilizado, ele se torna objeto de ódio e rancor.  A passionalidade chega ao ponto de as manifestações contra o governo eleito conterem manifestações em prol da volta da ditadura militar.  Isso não significa que a cordialidade deixou de haver, senão, e apenas, que a definição dos interesses privados deixou de derivar de raízes familiares.  O privado agora se identifica com instituições industriais, ainda que de origem familiar.  Ponhamos aspas na nova “cordialidade”.

 

“Cordialidade” industrial, como assim?  É aquela oriunda de instituições que, por sua capacidade de difusão pública, têm a possibilidade de forjar uma opinião pública.  A mudança nada tem de excepcional.  Pode-se mesmo dizer que seria bastante esperável.  Tanto antes como agora temos sido uma população de “ouvintes”, ou seja, em que o hábito da leitura é reduzido, seja pelo número reduzido dos alfabetizados, seja pela falta de hábito de ler, pensar e estudar.  Por isso os valores antes difundidos a partir da família se tornaram mais eficazmente transmitidos pela “oralidade” industrial.  Com exceção dos miseráveis, a mídia alcança todas as classes.  De posse de meios de divulgação de massa, os poderosos interesses privados se tornam mais potentes.  Para isso, têm apenas que saber recrutar colunistas, e entrevistadores dotados de uma oralidade agressiva, na aparência apenas técnica.  Em poucas palavras, o 7 de setembro de 2015 está marcado pelo advento da “cordialidade” midiática.  Os panelaços aparentemente se esgotam nos protestos contra os desastres governamentais.  Não percebem que assim contribuem para que continuemos um país grande apenas no tamanho.

 

Fonte:  Jornal ZeroHora/Luiz Costa Lima (Professor emérito da PUC-RJ) em 06/09/2014.