Translate this Page




ONLINE
6





Partilhe esta Página

                                            

            

 

 


Luis Antonio de Assis Brasil: Escrever Ficção
Luis Antonio de Assis Brasil: Escrever Ficção

ESCREVER PARA ENSINAR

 

Luiz Antonio de Assis Brasil, criador de uma das mais tradicionais oficinas literárias do país, publica manual sobre escrita.

 

Livro: ESCREVER FICÇÃO – Luiz Antonio de Assis Brasil – Ensaio, Companhia das Letras, 400 páginas.

 

Desde 1985, Luiz Antonio de Assis Brasil ministra a mais tradicional oficina literária do Estado e uma das mais bem-estabelecidas do país. Também ajudou a implantar na PUCRS o até agora único curso de pós-graduação voltado à Escrita Criativa no Brasil. Gora, essa experiência acumulada como professor, além da carpintaria do ofício trabalhada em mais de 30 livros, está virando um manual voltado para aspirantes a escritores.

 

ESCREVER FICÇÃO, lançado esta semana, é o nome da obra que condensa em 400 páginas várias reflexões sobre a construção de uma narrativa ficcional. Da criação do personagem ao estabelecimento dos conflitos essenciais ao enredo. Da escolha técnica de um narrador ao desenvolvimento de um mundo concreto onde situar a história.

 

Apesar de Assis Brasil estar há mais de três décadas ensinando técnica literária para aspirantes a escritores, o impulso para transformar os fundamentos de um curso em livro veio de um convite, feito pelo editor da Companhia das letras, Luiz Schwarcz. Como o autor estava em uma fase de intervalo entre projetos, teve o tempo para se dedicar ao volume, no qual apresenta aspectos da ficção a um aluno fictício chamado Thiago, que o procura com a ideia de um romance e que vai sendo orientado capítulo a capítulo – e, com ele, o leitor do livro.

- Esse Thiago é a soma de muitos Thiagos, muitas Alices, muitos alunos – define Assis Brasil.

 

REFLEXÕES SOBRE A ESSÊNCIA DO PERSONAGEM DE FICÇÃO

 

O livro foi escrito ao longo dos últimos dois anos. O processo de elaboração da obra teve a colaboração do escritor e professor Luís Roberto Amabile, aluno de Assis no Mestrado de Escrita Criativa da PUCRS. Assis também se dedicou a buscar subsídios que acumulou sobre o tema como escritor e como professor.

- Percebi que eu tinha um número muito grande de anotações. Coisas dos tempos ainda pré-internet, cadernos, papéis soltos. Mas havia muito arquivo já digitalizado, também, ou coisas já trabalhadas no computador e depois no tablet. Então, tinha muito material e foi juntar tudo isso e acrescentar algumas reflexões novas que tenho trabalhado nos últimos dois ou três anos sobre a personagem, principalmente.

 

O livro é estruturado em nove capítulos que mapeiam a criação do romance desde seus primeiros esboços. Um dos focos do texto está na construção do personagem: “Começar pela apresentação do personagem é criar uma promessa. É como dizer: ‘Olhe só, leitor, esse é o personagem que importa. Se continuar a leitura, verá coisas interessantíssimas acontecendo com ele’”.

 

A cada passo e a cada novo estágio, Assis ilustra as análises com exemplos tirados da literatura. Tanto os patamares clássicos de HAMLET, DOM QUIXOTE ou ODISSEIA quanto escritores contemporâneos internacionais como Ian McEwan ou Alessandro Baricco. Mas há também muito espaço para autores que escrevem em português, desde os canônicos Machado de Assis ou Eça de Queirós a destaques da geração em atividade, como Ricardo Lisias, Adriana Lisboa, Cintia Moscovich, Michel Laub ou Daniel Galera – os três últimos, alunos do próprio Assis em diferentes edições de sua oficina.

- Procurei me cercar de todo tipo de literatura para ampliar o público leitor. Entre os leitores, há os que afirmam só ler clássicos, e não literatura contemporânea. Ou tem aqueles que só leem o contemporâneo, não os clássicos. Tentei equilibrar. Tem autores portugueses, também, que nem sempre aparecem – comenta o autor.

 

TRECHO DE “ESCREVER FICÇÃO”

 

Mesmo os romances ruins podem nos ensinar algumas coisas. Uma delas, evidentemente, é o exercício da paciência, e outra, bem mais instrutiva, é o que devemos evitar quando escrevermos nosso próprio livro. Proponho que tentemos nos lembrar de um desses romances. Mas olhe: vamos esquecer as frases tortas, as redundâncias, a prolixidade, os espaços absurdos, o tempo esquizofrênico. Por um momento, fiquemos apenas com o personagem. Num romance ruim, o personagem começa de um jeito e chega no capítulo final do mesmo jeito, ou pior: teve sua atitude alterada sem razão alguma. Quer dizer: todas as atribulações foram gratuitas. A vontade é jogar o livro pela janela. Não faça isso, não só porque pode atingir alguém que esteja passando, mas também porque um romance com esses problemas nos ensina que a alteração coerente da atitude do personagem é tão importante quanto sua consistência. Dito de outra forma, precisamos pensar o personagem como um ser consistente em ação.”

 

 

ENTREVISTA LUIZ ANTONIO DE ASSIS BRASIL

 

O humanismo não vai morrer”

Embora ministre uma das mais antigas oficinas literárias do Brasil e tenha liderado a instauração da única pós-graduação em Escrita Criativa do país, Luiz Antonio de Assis Brasil só aceitou colocar essa experiência em forma de livro depois de um convite da editora. Nesta entrevista, concedida em sua casa, o autor fala do novo livro e da arte da escrita.

 

 

O senhor mantém uma oficina desde 1985 e é provavelmente o mais antigo professor de um curso do gênero no Brasil. Por que demorou tanto para que esse livro fosse escrito?

O livro saiu agora porque eu recebi um convite do editor Luiz Schwarcz. E por que nunca escrevi antes? Não porque não tivesse havido provocações dos alunos. Acho que foram várias coisas. A primeira delas, a preguiça (risos). Segundo, eu teria que interromper algum projeto de livro próprio em que estivesse trabalhando. Teria de parar um ano para escrever isso. Mas houve o acaso de que, quando recebi o convite, não tinha ainda começado nada novo. Recém havia publicado O INVERNO E DEPOIS e estava pensando em alguma outra coisa. Então, foi o momento certo.

 

 

O livro sistematiza o que o senhor vem ensinando, mas tem o fio condutor de um aluno, Thiago, que vem lhe apresentar um projeto de romance e, no conversar com ele, o senhor também está conversando com o leitor. É uma estratégia de ficcionista?

Esse Thiago é a soma de muitos Thiagos, muitas Alices, muitos alunos. Acho que sou o único cara no mundo que está orientando a escrita de oito romances ao mesmo tempo, nas fases de mestrado e doutorado. Eu tenho trabalhado só com a escrita criativa, não dou mais aulas de teoria, então acompanho a escrita e a elaboração desses romances. Foi uma escolha que, espero, será útil para as pessoas. Tenho contato com muitos aspirantes a autores que são pessoas preparadas, bem intencionadas, mas falta técnica, então talvez um livro desses possa ser útil. É um manual não nego que seja. Alguns amigos nem queriam que eu usasse a palavra “manual”: “Isso deprecia o livro”, me disseram. O título original era SOBRE A ESCRITA DA FICÇÃO. Aí o Schwarcz me sugeriu o ESCREVER FICÇÃO, achei melhor, tem um verbo, é mais forte. Nem havia um subtítulo, mas a editora me perguntou o que era, em essência o livro, e eu disse: “É um manual de escrita de ficção. Tem alguns momentos reflexivos, mas é um manual”. Ela respondeu: “Então por que não colocar isso como subtítulo?”.

 

 

O senhor ilustra seu ensaio com exemplos e trechos tirados tanto de clássicos da literatura quanto de escritores contemporâneos, internacionais e nacionais. Alguns dos nacionais até foram seus ex-alunos.

Procurei me cercar de todo tipo de literatura para atingir uma gama mais ampla de leitores. Foi um trabalho muito pensado. Tive a colaboração do Luís Roberto Amabile, que foi meu aluno e hoje dá aula na universidade, e que também me lembrou de alguns nomes. Ele me alertava para coisas que eu havia falado em aula e que poderiam ser incluídas no livro. A gente discutiu muito sobre o último capítulo, que é um roteiro para construção de um romance linear, e eu tinha muitas dúvidas sobre se mantinha ou não esse capítulo. Ele me convenceu a manter.

 

 

Ao longo das últimas décadas, o senhor passou por fases em que era muito discutida a validade das oficinas literárias. Sente que esse clima hoje amenizou?

Essa era uma discussão muito acesa há uns 25 anos. Mas, com o decorrer do tempo, o pessoal foi aceitando. E aqui tenho de afirmar uma coisa importante: sempre tive aceitação e apoio na universidade, desde o início, mas havia muitas críticas de fora. Acho até natural, era uma coisa nova, e as pessoas costumam resistir, a primeira reação é negar. E o ambiente em que havia as maiores resistências era o de outros escritores. Não dos leitores, não dos professores ou da academia, mas dos escritores. Não vou dizer que eram pessoas que queriam preservar aquela mística associada ao trabalho de criação, da inspiração. Acho que eram simplesmente pessoas que não acreditavam naquilo. Muita entrevista que dei começava invariavelmente com a pergunta: “É possível ensinar alguém a escrever?”. Depois de um tempo eu passei a dizer: “Essa pergunta, assim, eu não respondo mais”. Aí me perguntavam: “Mas então que pergunta eu devo fazer?” E eu respondia: “É possível que alguém aprenda a escrever”? E respondia: “Sim”. A primeira coisa, que deveria vir antes de tudo, é muita leitura. Depois, muita escrita. Depois, ouvir os outros, e assim por diante, e era possível, portanto, montar um curso desses que poderia ser útil para alguns, para outros, não.

 

 

O senhor pensa nesse livro também como uma espécie de legado?

É uma ideia arrepiante, porque nos leva diretamente à nossa mortalidade, mas tenho de concordar, pensando friamente. Mas reforço que esse livro representa minha reflexão de agora. Muitas coisas que eu pensava e ensinava antes mudaram. Coisas que eu coloquei no livro sobre a construção da personagem, sua questão essencial, a estrutura orgânica do romance, são novas. O que significa que estou ainda evoluindo.

 

 

Vivemos uma época de polarização em que a cultura parece estar sob ataque. Como o senhor vê essa situação?

O humanismo está vivo como nunca. Ele está sendo vítima de uma tentativa de sufocamento por algumas vertentes que agem com muita presença e muita truculência, o que é um fenômeno mundial neste momento. Pelo menos no Ocidente. Mas os valores humanísticos existem há dois milênios, como vão desaparecer? Podem ser sufocados, podem ser reprimidos. Já tivemos momentos históricos trágicos. Quem iria imaginar que depois da República de Weimar, em que tudo era liberdade, criação, viria o nazismo? Mas isso também passou. O humanismo pode ser sufocado, pode ser temporariamente calado, mas não vai morrer.

 

Fonte: Zero Hora/Segundo Caderno/Carlos André Moreira (carlos.moreira@zerohora.com.br) em 21/03/2019