A CARTOGRAFIA DE NOLL
Um dos organizadores do Festival Rastros do Verão, que homenageia João Gilberto Noll em Porto Alegre, comenta como, na trajetória do grande e solitário escritor, vida e obra se fundem em busca do sublime
Dos 19 livros e da vida de João Gilberto Noll (1946-2017), emerge uma cartografia particular das páginas e das andanças do autor, que segue apontado como um dos nomes mais importantes da literatura nacional. No eco da crescente relevância de sua obra, na segunda-feira (em 27/01/2020) começou em Porto Alegre o Festival Literário Rastros de Verão, que até o encerramento, em 15 de fevereiro, mantém o propósito de celebrar o legado de Noll e destacar a prevalência das cidades e seus arranjos na sua criação.
Mais do que isso, com o evento se pretende dar visibilidade para escritores e escritoras que lançaram obras de ficção e poesia no ano passado e fortalecer livrarias locais, num momento em que a cultura letrada é desprezada e perseguida por quem ocupa o ápice das estruturas públicas de poder. E, como as efemérides, embora previsíveis, são oportunas, durante o evento há também uma homenagem aos 40 anos de lançamento do primeiro livro de Noll, O CEGO E A DANÇARINA.
O nome do festival deriva do terceiro romance de Noll, RASTROS DO VERÃO (1986), história de um personagem que retorna à Capital e vaga pela cidade deserta na terça-feira de Carnaval. Como em outros títulos, as ruas são ambientes para personagens perdidos. Noll dizia que a solidão é o sentimento profundo da sua obra, que escrever é um trabalho solitário e ele, um animal literário. Nesse emaranhado, reconhecia que o sexo é o bálsamo para a solidão.
No livro CANÇÃO DE AMOR PARA JOÃO GILBERTO NOLL (Relicário, 2019), de Luis Alberto Brandão, o professor Ricardo Barberena publicou, em formato de peça teatral, as anotações que fez em aulas dadas por Noll: “O tema central da minha obra é a necessidade de se fundir ao outro... Superar a solidão... Numa fusão cósmica... Se jogar nessa vertigem... Uma especulação pelas calçadas... Uma solidão na multidão e nos passeios... Um sentimento de isolamento”.
Os espaços percorridos ou descritos pelo escritor abrigam a solidão do próprio Noll e de seus personagens. São cenários “da melancolia que se dá pela impossibilidade de fusão com o mundo e com os outros”, disse o escritor Jeferson Tenório na abertura do festival. “Ao mesmo tempo em que o corpo é a possibilidade de transcendência, é barreira também.” Os personagens se aprofundam nas promessas do sexo, mas a relação com o outro não se dá por aí, e sim pelo amor, observou Tenório.
Barberena também participou da atividade e ressaltou o papel da linguagem na obra de Noll e a busca pela possibilidade de gozo contida na literatura dele: “Noll não estava preocupado com as categorias tradicionais, mas com a escrita pulsional. Pretendia o gozo, a pulsão de escrever sem saber aonde chegaria, mas buscando uma estrutura fascinante que não se submetia ao enredo. Ele não queria contar uma história, mas burilar a linguagem”.
Noll se tornou célebre não apenas pela obra, mas pelas performances em eventos e aulas. Presenciei um desses atos no último curso que lecionou e que foi interrompido pela morte dele, súbita e solitária, no apartamento em que viveu por mais de uma década na Rua Fernando Machado, centro de Porto Alegre. Sua voz era frágil. Parecia se encolher ao falar, como se submergisse a si mesmo para – ao encontrar a própria substância – ordenar o sentido da escrita em meio às pausas.
Barberena rememorou esses hiatos. Com eles, descobriu que “o silêncio é uma arma poética de reflexão, interação, sensibilização e desaceleração do mundo”. Noll tinha a sabedoria de, na própria fala, não dizer tudo. Em sua escrita, no entanto, dizia tudo – mesmo que se dissesse envergonhado pelo que escreveu.
No primeiro dia do derradeiro curso, anotei o alerta de Noll: “Literatura é transfiguração. A vida é insuficiente. É preciso uma criação em cima disso”. Mais adiante, esclareceu o sentido da vergonha: “Literatura é sobre aquilo que não se fala socialmente. Trata do que é silenciado, não dito, interdito”.
Seguindo seus comentários, Barberena disse que o texto de Noll despertava a fantasia dos leitores, como se o autor fosse um animal erótico. Era, no entanto, um ser atento ao espanto do mundo: “Queria a cidade como um laboratório de observação”. Tendo em mãos a peça escrita, leu uma fala atribuída a Noll: “Me encanta a sensibilidade da linguagem. Ela é uma forma de chegar ao outro. Nisso existe um tesão! O melhor de estar vivo é a linguagem. (...) A literatura salva o sujeito. Se não fosse a literatura, eu seria uma lápide”.
Noll era um andarilho, e essa condição foi endossada por quem descobria a ideia DE SE ARTICULAR O FESTIVAL A PARTIR DA CARTOGRAFIA DO AUTOR. Surgiram testemunhos de quem presenciou as caminhadas solitárias nas ruas que drenam a CIDADE DE VIDA E DESALENTO, EM PERCURSOS APARENTEMENTE SEM FIM. Na peça de Barberena, consta uma reflexão de Noll sobre a cartografia do desamparo e da solidão:
“Quero as conversas das esquinas. A literatura é uma forma desgovernada de enunciar o mundo. Me criei lendo portas dos banheiros públicos. Eu sou leitor de Padre Vieira, mas, quando vou urinar, a porta do banheiro também me influencia. Eu bebo muito das ruas. Porto Alegre tem sido uma cidade-mito. A caminhada pelas ruas é doentia e doação. Eu sou um escritor das ruas... não dos interiores”.
E é pelas ruas e livrarias e entre leitores antigos e novos que o festival pretende manter pulsando a escrita de Noll, cometendo-se inclusive uma insurgência poética. Durante esses dias, a Fernanda Machado, rua onde o autor morava e fervilham três das livrarias que abrigam o evento, foi renomeada de João Gilberto Noll. Não se trata de decisão dos vereadores, mas a certeza de que a literatura amplia o sentido da vida.
Fonte: Jornal ZeroHora/Caderno DOC/Vitor Necchi/Jornalista e escritor, doutorando em Letras pela UFRGS, em 02/02/2020.