MACUNAÍMA – 90 ANOS DE UM CLÁSSICO MODERNISTA
A TRILHA HISTÓRICA DE SUA CONSAGRAÇÃO
Professor mergulha no caminho da obra de Mário de Andrade para se tornar um clássico nacional.
MACUNAÍMA é um clássico nacional. Um clássico modernista, que ajudou a definir a Semana de Arte Moderna como um marco da cultura brasileira, para muito além de sua real importância. Sim, livro e evento são superestimados, ambos por motivos que vale a pena tentar entender.
Não há quem tenha passado pela escola sem ter ouvido ao menos o som do nome e a história do índio, nascido negro no extremo norte do país e convertido em branco ao chegar à metrópole paulista. Ou que não tenha, quem sabe, vibrado de interesse ao ler o texto, escrito com a clara intenção de se aproximar da língua brasileira cotidiana, afastando-se do português escrito pernóstico. E é bem provável que alguma vez tenha passado, pela mente da maioria desse vastíssimo universo de leitores, a lembrança do romance de Mário de Andrade em associação com um juízo sobre o caráter dos brasileiros – ou da falta dele, como reza o intrigante subtítulo que o autor atribuiu à obra, “o herói sem nenhum caráter”.
Escrito num jorro de poucos dias, entre 16 e 23 de dezembro de 1926, numas férias passadas em fazenda de um familiar, em Araraquara, interior de São Paulo, depois revisto e reescrito até a edição em livro, que veio a publicar em julho de 1928, MACUNAÍMA desde logo precisa ser visto como uma parte decisiva do Modernismo brasileiro, ao lado dos livros de Oswald de Andrade, da pintura de Anita Malfatti e de Tarsila do Amaral, dos ensaios de Paulo Prado. O movimento, protagonizado por artistas basicamente paulistas, de escassa repercussão imediata, de fato seria vencedor a longo prazo sobre o conjunto da cultura letrada brasileira.
Narrativa alegórica, carregada de lendas, dizeres populares e visões de mundo registradas na extensa geografia brasileira, MACUNAÍMA tem desde o começo de sua existência uma clara vocação para representar o país. Mário de Andrade (1893-1945), autor de uma obra vasta e variada, parece ter encontrado neste livro um jeito de dizer concentradamente o principal do que pensava sobre o Brasil, num momento chave da inteligência entre nós, no primeiro centenário da Independência do país.
Mário de Andrade nasce em família letrada e muito católica, com um avô materno de destaque na província paulista. Seu pai havia tido uma trajetória de ascensão social: foi tipógrafo, guarda-livros, gerente de banco, jornalista e escritor eventual, finalmente assessor do futuro sogro. Mário tinha os traços mulatos de seu pai, que seus irmãos não herdaram; o irmão mais velho foi político de certo destaque, e o mais novo, loiro e tido como muito bonito, faleceu aos 14 anos de idade; essas experiências, traumáticas em sentidos diferentes, se somaram a uma sexualidade tida como heterodoxa e ainda hoje uma espécie de tabu.
Figura central da mítica Semana de Arte Moderna de 22, o autor de MACUNAÍMA torna-se diretor do Departamento de Cultura da capital paulista em 1934. Influenciou diretamente na concepção do Serviço de Proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em mais de uma ocasião, empreendeu por conta própria excursões de estudo da cultura popular brasileira, ao interior de São Paulo, a Minas, ao Nordeste e ao Norte do país; viveu três anos no Rio de Janeiro, tendo antes conhecido as cidades mineiras do ouro. Sua influência é evidente em muitos setores e instituições, como é o caso da área de letras e humanidades da própria USP, criada nos anos 1930. Nunca viajou à Europa, ao contrário de figuras de destaque de sua geração e de sua província de origem, como é o caso particular de Oswald de Andrade, com quem teve uma relação de emulação, com fases de colaboração e momentos de afastamento.
A trajetória histórica do livro revela aspectos muito interessantes. Editado em 1928, numa tiragem de modestos 800 exemplares, recebeu segunda edição quase uma década após, em 1937, quando mais mil exemplares saíram ao mundo, e a terceira edição ocorreu apenas em 1944, último ano de vida do autor, desta vez com 3 mil exemplares. Podemos concluir que MACUNAÍMA não foi um sucesso, nem de vendas, nem de público, nos primeiros 15 anos de vida.
E nem mesmo de crítica. Embora tenha recebido alguns elogios, foi muito escassa a repercussão do livro, até o fim da vida de Mário. (E não faltaram críticos que assinalaram claro desgosto pela leitura, como foi o caso de João Ribeiro, que no mesmo ano de 1928 afirmou: “Se o Macunaíma fosse um livro de estreia, o autor nos causaria pena, como de um próximo hóspede do manicômio”.) O autor, portanto, não viu consagrada sua mais importante obra ficcional.
A partir de 1969, sucedem-se novas tiragens, ao menos uma por ano. Também em 69, o livro foi adaptado ao cinema por Joaquim Pedro de Andrade, agora sob o signo geral do Tropicalismo. Depois disso, o livro recebeu traduções (italiano, francês, inglês, alemão) e estudos consagradores, foi tema de escola de samba no Rio e virou peça de teatro na mão de Antunes Filho e enfim ingressou no rarefeito grupo dos clássicos de leitura imperiosa.
Os motivos dessa consagração são profundos: de algum modo, MACUNAÍMA parece falar uma linguagem adequada para aquele novo contexto, em que tudo estava sendo questionado, a começar pelos valores da então chamada “identidade nacional”. Desde a Independência, muitos haviam se empenhado em dizer como era o Brasil, país novo e gigantesco. Se agora, em 2018, esse assunto parece antigo e fora de moda – a ideia de uma identidade única para todo o país faz agora pouco sentido –, não era assim naquele momento de consagração do livro modernista, porque se pensava que o Brasil era algo decifrável – e Macunaíma pareceu a muitos uma perfeita tradução do país.
Mas essa consagração, não podemos esquecer, coincide perfeitamente com a ascensão de São Paulo ao patamar dominante da cultura no país, seja pela via de seu fortíssimo sistema universitário, seja pela de sua indústria cultural. Foi assim que MACUNAÍMA deixou de ser o grito vanguardista, de leitura para mim torturante por sua dicção forçada, para se converter numa espécie de interpretação oficial do país.
TRAILER: https://www.youtube.com/watch?v=cgNxqlNIC7I
Fonte: Correio do Povo/CS/Luís Augusto Fischer/Professor, ensaísta, escritor. Doutor em Literatura Brasileira pela UFRGS. Patrono da 59ª Feira do Livro de Porto Alegre, em 2013. Autor de obras como: Machado e Borges, Contra o Esquecimento, Dicionário de Porto-Alegrês e Quatro Negros, em 15/12/2018.