MACHADO, A MORAL E A NÁUSEA
Escritor discute polêmica regra de um dos principais concursos de contos do país, que exige das obras inscritas a promoção de “valores morais” Por Cassionei Petry.
O Prêmio Sesc de Contos Machado de Assis, promovido pelo Sesc do Distrito Federal, trouxe no seu regulamento um item que chamou a atenção deste humilde escriba. Preparava-me para enviar um dos meus geniais trabalhos para o concurso literário, quando deparei com esta pérola: “Os contos devem conter elementos que promovam o bem-estar e os valores morais”. Li uma, duas vezes. Depois reli o nome do prêmio e pensei, deve ser algum estagiário que trocou os textos, talvez eles estejam promovendo também um concurso de fábulas infantis ou então de manuais de boa conduta e o coitado misturou as coisas (me desculpem, estagiários, mas não poderia perder a piada, sem graça é verdade). A regra, no entanto, é séria, apesar de parecer uma piada, sem graça também. Nosso Machado poderia ter sido poupado disso.
Você, caro leitor, mesmo que sua bagagem de leituras não seja lá muito grande, deve lembrar-se de um sem-fim de obras literárias que não respeitariam esse requisito. Não seriam essas obras dignas de receberem um prêmio? Promovem bem-estar os versos “Escarra nessa boca que te beija!”, de Augusto dos Anjos? Os valores morais são respeitados no conto Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, em trechos como este: “A velha tava no corredor, caída no chão. Também tinha batido as botas. (...) Acho que morreu de susto. Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha”? A propósito, este conto foi censurado pela ditadura militar.
O próprio Machado de Assis, que dá nome ao prêmio, escreveu contos que seriam desclassificados. Em Teoria do Medalhão, por exemplo, um pai ensina a seu filho a arte de ser esperto para “se dar bem” na v ida, desrespeitando valores morais para alcançar certo prestígio na sociedade. Já em O Enfermeiro, lemos a história de Procópio, incumbido de cuidar do coronel Felisberto, um velho doente que o atormenta o tempo todo. Perdendo a paciência, acaba estrangulando seu patrão. Num primeiro momento, sua consciência pesa, ainda mais depois de saber que o velho lhe deixara uma fortuna. O sentimento de culpa, porém, vai desaparecendo com o tempo, à medida em que desfruta da herança: “... a verdade é que ele devia morrer, ainda que não fosse aquela fatalidade”. Não há lições morais nesses contos, mas sim, a partir da fina ironia machadiana, um retrato fiel do caráter, ou melhor, a falta de caráter do ser humano. Eles não promovem o bem-estar e sim um mal-estar desgraçado ao nos darmos conta de que a espécie humana é assim. Nós somos assim.
É a estética e não a ética o que se busca na elaboração de um texto literário. O termo “estética” vem do grego e significa “sensação, perceber pelos sentidos”. Está relacionado ao que é ou não é belo nas artes. Já a palavra “ética”, do grego, etimologicamente é sinônimo de “moral”, que vem do latim, e ambas significam “costume, caráter”. Pois é o efeito estético que o artista literário persegue em primeiro lugar. A elaboração das palavras em busca de novos sentidos e que provoquem sensações no leitor. As questões éticas vêm como conteúdo, para serem discutidas, debatidas, mas não impostas.
A literatura é uma forma de arte e, como tal, trata de todas as questões humanas, sem julgamento, porém, de quem escreve. Pelo menos o escritor e seu narrador não o fazem (no máximo sugerem valores), salvo um narrador em primeira pessoa ou um intruso, como o do Machado de Assis, que inclusive julga o próprio leitor. É este, aliás, quem interpreta e pode julgar as ações das personagens, a partir de seu conhecimento de mundo, sua cultura e ideologia. O que é moral para mim, pode não ser moral para outro. Logo, que valores morais devem ser promovidos?
O bom leitor não confunde o narrador ou eu lírico da poesia com o escritor de carne e osso. Muito menos as personagens. Todos esses elementos são criados pelo escritor para expressar algo que não seja exatamente o que ele pensa. Acontece que o leitor pode interpretar que o escritor, ao criar uma personagem imoral, ainda mais se for protagonista, estaria difundindo o seu próprio conceito certo de valor e, ao se identificar com seu herói de papel, acabe seguindo os seus passos. O caso emblemático é do romance Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, que gerou uma série de suicídios na Europa do século 18. É essa a preocupação dos organizadores do concurso?
Este caso não é isolado. Editais para bolsas de criação literária possuem regras parecidas. Da mesma forma, a avaliação da redação do Enem, ao propor zerar a nota do aluno cuja dissertação não respeite os direitos humanos – mesmo que ele escreva um ótimo texto, bem articulado, com vocabulário e argumentos consistentes –, também restringe o livre pensamento, afinal o conceito do que seja direitos humanos é muito polêmico no Brasil. Como a dissertação expressa claramente o que o autor pensa, é uma regra que ainda se pode discutir. A literatura, porém, não merece sofrer cerceamentos desta ordem. Devemos deixa-la livre para promover náusea, horror, repugnância, mal-estar. Bem-estar apenas lembra o nome de um programa de televisão.
Fonte: ZeroHora em 25/10/2015