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Silviano Santiago: o Gênero de Biografia Fictícia
Silviano Santiago: o Gênero de Biografia Fictícia

O INTELECTUAL E O PODER

 

Homenageado pela Associação Brasileira de Literatura Comparada, Silviano Santiago construiu uma trajetória sólida e hoje, aos 80 anos, é referência em se tratando das possibilidades estéticas de um gênero não muito usual no país: A Biografia Fictícia.

 

Na mesma semana em que fomos bombardeados por cenas patéticas de Brasília, dentre elas a homenagem que o deputado Wladimir Costa fez a Michel Temer (tão consistente quanto a forma que usou para manifestar-se: tinta lavável), houve outra homenagem em curso no país – esta, sim, digna de registro: o merecido reconhecimento que a Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic) deu a Silvano Santiago, em congresso realizado no Rio de Janeiro.

 

Seu nome não é midiático, mas com certeza Santiago um dia será reconhecido como um dos intelectuais contemporâneos mais completos do país. Aos 80 anos (nasceu em 1936, no município mineiro de Formiga), ele segue produzindo o que há de melhor tanto na ficção quanto na reflexão sobre a literatura brasileira.

 

Iniciou sua contribuição já transitando entre as várias formas de expressão artística, mas, ao lecionar literatura no Brasil, nos EUA e, posteriormente, na Europa, não só absorveu o que o cosmopolitismo oportunizava como também retribuía com uma produção tanto ensaística quanto ficcional, perpassada por esses conhecimentos.

 

Das inúmeras obras que escreveu, destaco dois livros: EM LIBERDADE, de 1981, e MACHADO, de 2016. No primeiro, o mote para fisgar o leitor em suas reflexões, em forma de diário fictício, são os primeiros dois meses de liberdade de Graciliano Ramos (1892-1953) após o tempo em que ficou preso quando da ditadura de Getúlio Vargas no Estado Novo. O segundo é um romance sobre o que teriam sido os últimos quatro anos de vida de Machado de Assis (1839-1908).

 

Silviano Santiago não minimiza o trabalho do leitor: não subestima a capacidade que este tem de preencher, com sua inteligência, os espaços deixados pelo texto repleto de sutilezas. No livro EM LIBERDADE, pode-se ler não só a situação do intelectual no Brasil (Graciliano fica às voltas com a mediocridade do poder – é preso sem que haja qualquer acusação contra ele), mas também como se dá o convívio com seus pares (o tensionamento de sua escritura se opõe ao desleixo de Lins do Rego, seu contemporâneo). O leitor é posto à prova com uma fusão de personagens, por exemplo, no episódio do enterro de Cláudio Manuel da Costa no qual quem fala é o padre – só que, na verdade, trata-se da prédica de Dom Paulo Evaristo Arns quando do culto ecumênico de Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura militar em 1975. Num assumido exercício de pastiche, na esteira dos eventos da vida privada de Graciliano, com o olhar do intelectual de hoje, Santiago questiona a forma como o intelectual de ontem se posicionava.

 

MACHADO (2016) igualmente instiga o leitor que, inicialmente, fica confuso – o que já acontecia no início da leitura de EM LIBERDADE. Porque, no livro mais recente, mesmo anunciado como romance, há uma sobreposição urbana da capital federal e as relações sociais e políticas entre os atores sociais (autores, no caso) pendentes entre a monarquia e a República. O próprio Santiago confessa que trata-se de um livro no qual deu vazão à erudição acumulada em toda a sua trajetória. Posteriormente, ao trazer para a narrativa a vida privada – dores físicas causadas pela epilepsia e crises nervosas e dores psicológicas que são consequência da viuvez e da consciência da finitude – encontra a verossimilhança perfeita.


Em MACHADO, Silviano parece pôr em prática uma tese defendida por um de seus personagens, o monarquista Carlos de Laet: de que a sensação de finitude é que faz a arte ser produzida com melhor qualidade e maior intensidade.

 

Enfim, nem tudo está perdido. Nem só de Brasília vêm as notícias.

 

Fonte: ZeroHora/Caderno DOC/Noili Demaman (Doutora em Literatura Brasileira) em 27/08/2017.