“EU ESCREVO COMO MULHER, SIM.”
A escassa presença feminina em prêmios e antologias, o machismo e a desigualdade no meio literário.
“Talvez 2014 tenha sido o ano das mulheres. Torço para que seja uma tendência rumo à igualdade.”
Dois mil e quatorze foi o ano da hashtag #leiamulheres2014. Foi o ano em que se discutiu uma antologia que listou 101 autores contemporâneos imperdíveis com apenas 14 mulheres. Foi o primeiro ano em que o Prêmio São Paulo de Literatura chancelou uma mulher na categoria Livro do Ano. Marina Colasanti também ganhou o Jabuti de Melhor Livro de Ficção do Ano. O ano acabou, mas ninguém vai problematizar a presença feminina mais. Já dá para dizer que 2014 foi o ano das mulheres na literatura brasileira.
O #leiamulheres2014 surgiu em janeiro. Quis tentar. A ideia era simples: eu conseguia citar nomes de autores mais rápido que de autoras. Conhecia mais obras escritas por homens. Não coloquei fogo em livro algum, não bani nada. Priorizei a minoria da minha estante.
Algumas pessoas perguntaram se eu não estaria “me limitando”. Eu respondia que já devo ter passado um ano inteiro lendo 90% de autores homens. No entanto, a ideia de ler apenas 90% de homens ao longo de um ano soava como “o normal”. Eu me identifico como feminista, mas a intenção era mais geral: dar um passo rumo à diversidade literária. Leituras têm que vir da maior variedade possível de experiências humanas. E sair da zona de conforto não faz mal.
A maioria dos meus interlocutores dizia não reparar no gênero de escritores e fim de conversa. Não é engraçado que citem mais autores homens entre os favoritos? Que ao “não olhar o nome de quem escreve”, escolhamos tantos homens?
O site americano Vida mantém percentagens de gênero sobre resenhas em grandes publicações literárias. Ao longo de 2012, apenas 22% dos livros resenhados no New York Review of Books, 25%, no The Times Literary Supplement, e 23%, no The Nation, eram livros escritos por autoras.
Então, a (editora) Dublinense lançou a antologia “Por que ler os Contemporâneos?”, na qual resenho um homem. Questionou-se a presença de 14 mulheres entre 101 autores “para entender o século”. A antologia reflete o que se resenha, o que se lê e o que se discute. A antologia é machista porque o meio literário é machista. E nada disso é consciente. Aliás, machismo dificilmente é consciente. Nunca é uma cúpula de homens rindo maleficamente e planejando: “Vamos calar todas as mulheres por serem tão inferiores”.
Claro que, vá lá, mulheres sejam menos publicadas. No Brasil, 72% dos autores publicados são homens, segundo a pesquisa de Regina Dalcastagné em “Literatura Brasileira Contemporânea – Um Território Contestado”. Ainda assim, se o mero fato de um grupo escrever garantisse representatividade, a antologia da Dublinense teria o dobro de mulheres. A questão é que, como no caso DO SITE Vida, a maioria das estatísticas pende para o lado masculino. As mulheres escrevem tão mal assim?
O texto não é o suficiente.
Já me disseram que eu “escrevo como um homem”, como um aplauso. Ouvi isso, com tom de elogio sincero, um olhar de li-teu-livro-e-analisei-com-calma. Já ouvi: “Não gosto de livros escritos por mulheres, mas gostei desse” ou “Não achei que mulheres podiam escrever assim”. Elogios sinceros. Ninguém com uma mochila cheia de tabelas e planos para mandar as mulheres de volta para a cozinha. Meu favorito é: “Você não escreve como as outras mulheres”. “Na verdade, eu escrevo como mulher, sim. Você que é babaca mesmo”, é a resposta que tenho pronta.
Ana Luís Escorel disse – ao ser a primeira mulher vencedora do Livro do Ano do Prêmio São Paulo de Literatura – que o que importa é o texto. O contexto da frase é um pouco diferente, mas tomo liberdades. Às vezes, o texto não é o suficiente. Mulheres são menos lidas, menos resenhadas. Ia dizer menos premiadas, mas a marina Colasanti ganhou o Jabuti de Melhor Livro de Ficção de 2014. Porém, não é a norma. Por exemplo, desde sua criação, o Prêmio Portugal Telecom premiou mulheres em 2008 (Beatriz Bacher), 2011 (Marina Colasanti e 2013 (Cíntia Moscovich). São três autoras para 31 autores vencedores. As causas são históricas, estruturais e estúpidas. E não importam. Importa que existe desigualdade hoje. Se pudermos concordar que, sim, existe machismo no meio literário (na vida, no Universo), 2014 valeu a pena. Já diz o clichê que aceitar é o primeiro passo.
Não precisamos concordar com motivos para saber que a diferença existe. Existem lacunas ainda maiores em questões raciais, de orientação sexual e de gênero, tantas outras e suas interseccionalidades. Sobre essas, sou melhor ouvindo do que falando. A maioria das pessoas aceita que é injusto, mas não repensa hábitos. Como leitores, talvez devêssemos assumir parte da responsabilidade. Em especial porque a perda é grande. Não sugiro cotas. Sugiro ler mulheres, e só.
Não um ato motivado por feminismo ou por uma hashtag de um ano. Por consciência como leitor. Se uma pessoa come apenas carne, sabe-se que é um consumo desequilibrado. Para mim, se tudo que se lê é escrito por um recorte da população, é tão desequilibrado quanto. Talvez 2014 tenha sido o ano das mulheres. Torço para que seja uma tendência rumo à igualdade, mais do que uma exceção. (Luísa Geisler/AG)
Fonte: Jornal O Sul-Caderno Reportagem-11/01/2015