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Haverá Escritores Negros na Feira do Livro?
Haverá Escritores Negros na Feira do Livro?

HAVERÁ ESCRITORES NEGROS NA FEIRA DO LIVRO?

 

DOIS AUTORES LANÇAM QUESTIONAMENTOS À DIREÇÃO DA FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE SOBRE A FALTA DE REPRESENTAÇÃO DA LITERATURA NEGRA EM EVENTOS DA ÁREA, TEMA QUE PROVOCOU POLÊMICA NA FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PARATY (FLIP) DESTE ANO.

 

No dia 7 de julho, postei em minha página do Facebook a seguinte indagação: quantos e quais escritores negros farão parte da 62ª Feira do Livro de Porto Alegre? Como é usual acontecer nessas ocasiões, alguém replicou:  “Mas escritor tem cor?”.  Ao que eu respondi, de pronto:  “Escritor tem cor, sexo, CPF e RG”.  Desgraçadamente, concepções como essa, que não só eu defendo, mas muitos outros, ainda provocam constrangimentos.  Entretanto, o problema não é nosso se uma parcela de leitores e fruidores segue depositando confiança na crença anacrônica de uma “arte pura”.

 

Recentemente, tivemos a chance de testemunhar uma discussão muito importante a respeito da invisibilidade dos escritores negros relativamente às práticas seletivas de prestigiamento e de indiferença vigentes no sistema e no mercado literários.  A esse propósito, evoco aqui a polêmica causada pela – para dizer o mínimo – incompetência da curadoria da Flip que, em uma edição tida e havida como inovadora, porque dedicada à produção literária das mulheres, não foi capaz de apresentar uma escritora negra sequer para ser integrada ao evento.  Dezessete escritoras brancas convidadas.  Nenhuma negra.  Eu posso ainda refrescar a memória do leitor com o episódio da comitiva de escritores brasileiros enviada à Feira do Livro de Frankfurt de 2013: essa comitiva tinha apenas um ou dois escritores negros.  Enfim, trata-se de uma questão em relação à qual as curadorias de feiras e eventos literários não podem mais se comportar com indiferença nem esconder seus critérios de escolha atrás de desculpas convencionais e retardatárias.

 

No caso da Flip, por exemplo, o curador respondeu às críticas dizendo que tentou agendar as participações de Elza Soares e Mano Brown, mas infelizmente, segundo ele, as negociações não deram certo.  Não tenho nada contra os dois artistas, pelo contrário, mas circunscrever a presença negra na literatura contemporânea apenas a esses nomes revela um total descaso a respeito da riqueza de vozes e de linguagens da autoria negra brasileira que, pelo menos, já há quase 30 anos vem despertando o interesse de leitores e pesquisadores em todas as partes.  Por outro lado, pelo perfil dos convidados negros desejados pela curadoria da Flip, o teor da participação negra no evento não escaparia à rotina da mera animação de festa, porque, em que pese a contundência estético-política de Elza e Brown, ainda estaríamos presos à nossa proverbial dimensão rítmico-musical; espécie de essência ou de lugar negro tolerado pela casa-grande.

 

Foi pensando exatamente nessas imposturas e nesses enjoamentos preconceituosos que fiz a pergunta já mencionada bem no início desse texto, repito-a: quantos e quais escritores negros farão parte da 62ª Feira do Livro de Porto Alegre? Insisto nela porque até agora não obtive resposta completa da organização da Feira do Livro de Porto Alegre.  Na verdade, consegui uma resposta parcial.  Sônia Zanchetta, responsável pela Área Infantil e Juvenil da feira, confirmou a participação, este ano, dos escritores Heloisa Pires Lima, Rogério Andrade Barbosa e Sérgio Vaz.  Além disso, segundo a organizadora, o coletivo de poetas negros Sopapo Poético apresentará um sarau no Teatro Carlos Urbim, e o Coral do centro Ecumênico da Cultura negra – Cecune, se apresentará no encerramento da programação no mesmo teatro pelo 16º ano consecutivo.

 

Vamos por partes.  Os três escritores mencionados por Sônia Zanchetta, a saber, Heloisa Pires Lima, Sérgio Vaz e Rogério Andrade Barbosa, representam o vago perfil do escritor que “trabalha na área da literatura afro-brasileira”, isto é, eles entram no rol dos escritores negros devido à “temática”, o que é um erro conceitual.  Esse erro conceitual permite abrigar, inclusive, o virtual escritor branco de boa-vontade, só que, neste caso, o problema da invisibilidade do escritor negro segue sendo negado.  Em outras palavras, esse branco sensível à cultura afro-brasileira pode passar a noite inteira, a noite em claro, lendo e praticando literatura negra, mas na manhã seguinte ainda vai acordar como um indivíduo branco.  Quanto à participação dos dois coletivos negros, entendo que serve como uma espécie de atenuante, mas ainda acho pouco e segue na linha de “abrilhantar” o evento.  Concordo que é possível e estratégico ocupar esse espaço simbólico.  Romper o círculo endogâmico da branquitude usando não apenas essa expressividade por meio da qual sempre somos lembrados, mas lançando mão também de nossa reflexão sobre a literatura e seus modos de consagração e exclusão.

 

Com efeito, a presença da autoria negra na Área Infantil e Juvenil da feira do Livro de Porto Alegre é tímida demais, para justificar essa conclusão basta mencionarmos que a Feira tem duração de duas semanas, sua programação é intensa, cheia de debates, lançamentos de livros, conversas com escritores, oficinas, etc.  E diante de tudo isso a coordenação da Área Infantil e Juvenil traz com como contribuição apenas dois ou três escritores negros e dois coletivos de cultura afro para entreter os leitores e visitantes.  É pouco.

 

Assim, ainda aguardo uma resposta da coordenação da Área Adulta da Feira à questão: quantos e quais escritores negros farão parte da 62ª Feira do Livro de Porto Alegre?  Meu questionamento foi público.  Suscitou uma série de manifestações, tanto de escritores negros/brancos, como de leitores e interessados.  Foi por essa razão, aliás, que Sônia Zanchetta, com grande presteza, veio a público e apresentou uma resposta.

 

Espero que a Área Adulta da 62ª Feira do Livro de Porto Alegre nos apresente uma posição.  Espero que esse silêncio, esse intervalo sem resposta, quando rompido pela manifestação pública da coordenação, não se revele uma decepção.  Esperamos que seja uma resposta de gente grande.

 

POST-SCRIPTUM: SUGESTÕES

 

Sugiro não só à organização da 62ª Feira do Livro de Porto Alegre, mas do mesmo modo às edições vindouras do evento, bem como às demais feiras do interior do RS, que suas curadorias: (a) ou passem por um processo de formação no sentido de incorporarem à categoria do literário a representação das diversas étnicas e de gênero presentes nas poéticas contemporâneas; (b) ou constituam curadorias que contenham representantes dessas diversidades, isto é, curadores com um conhecimento mais aprofundado a respeito de seus respectivos campos estético-literários.

 

Com relação à incorporação da literatura negra ao cardápio das feiras de livro, eu poderia sugerir os seguintes nomes:  Mel Adún, Jorge Fróes, Henrique Freitas, Esmeralda Ribeiro, Guellwaar Adún, Eliane marques e Edimilson de Almeida pereira.

 

Enquanto isso, para quem quiser – ao invés de atrapalhar – se informar mais sobre escritores negros, visite o portal Literafro: zhora.co/litera-afro

 

Fonte:  Zero Hora/Ronald Augusto (Poeta, músico e ensaísta. É autor, entre outros, de “Cair de Costas” (2012) e “Empresto do Visitante” (2013). Em 07/8/2016.

 

A COR DA LITERATURA

 

A falta de escritores negros na festa Literária Internacional de Paraty (Flip) gerou debates entre as entidades que promovem festas literárias e os escritores negros.  As explicações do curador Paulo Wernek, que ao final da Flip se comprometeu a dialogar com as entidades acadêmicas em busca de uma ampliação da diversidade, não foram suficientes para minimizar as críticas.  Em junho, o grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras/UFRJ escreveu uma carta aberta ao evento afirmando que as escolhas da curadoria naturalizam o racismo por não promoverem a diversidade num evento de grande visibilidade.  O autor Lázaro Ramos, que participou da Flipinha, defendeu a participação de autores negros e disse que “é preciso não se calar diante da ausência de negros em todos os espaços da sociedade”.

 

A discussão sobre a ausência de autores negros aqui no Estado foi levantada semanas atrás pelo poeta e escritor Ronald Augusto ao questionar, em seu Facebook, quantos autores negros participariam, este ano, da 62ª feira do Livro de Porto Alegre.  Até o momento, segundo o próprio Ronald, as respostas foram insatisfatórias, por parte dos organizadores.

 

A organização de eventos literários de grande porte é constituída de diversos fatores: patrocínio, editoras, venda de livros, escritores internacionais e as verbas públicas que estão cada vez menores.  Compreende-se que a equação é difícil, entretanto, me parece que prestar atenção nas escolhas étnicas e de gênero também deve fazer parte deste processo o que é preciso, em nome da diversidade, ampliar o campo de visão.  Assim  como o crítico Antônio Candido escreveu que a literatura é um direito básico para o ser humano, creio que o público leitor também tem o direito de ter acesso a outras experiências literárias que não girem em torno apenas de uma determinada classe ou cor.

 

A argumentação de que os escritores são chamados para os eventos porque atendem a uma estética universal e de qualidade é falha, primeiro porque o “universal” é apenas mais uma visão construída por um “centro” que não costuma olhar para as margens.  E, segundo, porque é preciso compreender que a falta de negros em eventos e festivais literários não é um problema estético.  É um problema político.  Curadores e organizadores ainda parecem desconhecer o que é produzido ora dos círculos historicamente privilegiados das grandes editoras, desconhecem os estudos acadêmicos que mapearam e ainda mapeiam escritores negros pelo país, como bem colocou a escritora Conceição Evaristo em uma mesa da Flip.

 

Por outro lado, colocar autores negros numa feira literária não significa que tenham de discutir apenas assuntos sobre a negritude, por exemplo.  Escritores são escritores.  Escritores negros não são militantes da causa negra.  São militantes da causa literária.  Não se trata de pôr fora os cânones da literatura ocidental.  Talvez Machado de Assis não fosse Machado de Assis sem Shakespeare, Lima Barreto não seria Lima Barreto sem Cervantes.

 

Portanto, o que me parece estar em jogo aqui é a falácia de acharmos que a literatura não tem cor.  Mas ela tem.  Certamente, num mundo ideal, autores deviam ser lidos por seus livros e não porque são negros.  Num mundo ideal, a escritora Carolina Maria de Jesus não deveria ser uma exceção, não deveria ser uma das poucas escritoras negras brasileiras a ser reconhecida, no entanto, este mundo ideal ainda não existe, e enquanto ele não existir, a reivindicação me parece justa e necessária,  Aguardemos.

 

Fonte:  Zero Hora/Jeferson Tenório (Escritor, autor de “O beijo na parede” (2013) em 07/8/2013.