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Paulo Bentancur III: por Luiz Maurício Azevedo
Paulo Bentancur III: por Luiz Maurício Azevedo

PAULO BENTANCUR III

UM RECORTE DENTRO DE “FRIO”

 

Em janeiro de 2001 recebi a melhor dica que um escritor pode receber:

 

“O único momento em que um escritor é livre é na primeira frase.  A partir daí tudo é consequência, prisão.  Escrever é não se perder.”

 

Quem me disse isso foi Paulo Roberto Ribeiro Bentancur.  Paulo, o ex coordenador do Livro e Literatura da Prefeitura de Porto Alegre.  Paulo, o ex diretor da revista VOX.  Paulo, o autor de quarenta e dois livros.  Paulo, o homem que morreu no último domingo de agosto de 2016, deixando duas filhas.

 

Nascido em Santana do Livramento, ele tinha um sobrenome cuja pronúncia exigia paciência.  De origem franco-basca, Bentancur não é Bittencur, nem Bittencourt.  É um sobrenome incomum, como com vinha a um homem incomum.  Tudo em sua história estava fora do lugar: ele fora batizado com o nome do mais controverso cristão da tradição católica, embora fosse ateu.  Era conhecido por ser um bom professor dos fundamentos básicos da literatura, embora tivesse se caracterizado por realizar malabarismos estéticos complexos, manipulando e subvertendo justamente os mandamentos que tão vem sabia ensinar.  Neste espírito, escreveu o mais radical livro da literatura gaúcha:  INSTRUÇÕES PARA ILUDIR RELÓGIOS (nossa única versão bem sucedida de literatura pós-moderna, um livro no qual os personagens são as coisas e o enredo é a interação entre os fragmentos: uma criação debordiana sem Debord).

 

Agora que está morto, fica nítido que escrevia muito bem; talvez, bem demais para um Estado acostumado a degola, tradição e geada.  Tivesse sido um escritor menor, hoje estaríamos discutindo a compra do terreno para a instalação de uma casa de cultura em sua homenagem.

 

Por mais de uma vez ouvi a história de que, quando decidiu ser escritor, procurou Moacyr Scliar.  Queria dicas de como escrever.  Queria saber sobre tudo o que Scliar estivesse disposto a contar.

 

E Scliar, generoso que era, contou tudo a ele.  E ele guardou fonema por fonema em uma fita Basf Cromo.  Cinquenta e oito minutos de conversa gravada com o auxílio de um gravador Philips N2233K.

 

Fez isso porque não tinha uma super oito.  Fez isso porque não tinha sequer um gravador portátil.  Fez isso porque nasceu pobre.  E, como alguém que nasce pobre, teve medo que aprender a optar pela legitimidade ou pela acomodação.  Escolheu a primeira, o que sem dúvida contribuiu para que morresse aos cinquenta e nove.

 

Quanto a mim, nunca gravei nossas conversas.  Cometo muitos erros.

 

Na última vez que nos vimos, ele me disse assim, com o humor característico que orbitava ao redor de sua inteligência viva:

 

 “Maurício, nesse mundo tudo que é bom acaba mal.”

 

Depois se despediu, porque já era tarde para ele, como me despeço dele agora, porque é tarde para mim também.

 

Paulo tinha o costume de guardar recortes de jornal dentro de exemplares de livros.

 

Colecionava notícias da morte de autores queridos para ele.  Depois que eu terminar esse texto doído vou levantar, abrir um exemplar de FRIO e colocar dentro dele um recorte qualquer com a notícia de sua morte, exatamente como um dia ele fez Julio Cortázar, exatamente como um dia ele fez com Onetti.  E vou fazer isso sem chorar porque isso é, afinal, tudo o que temos, nós, que somos o que morremos.

  

Fonte:  Correio do Povo/CS/Luiz Maurício Azevedo (Doutorando em Teoria e História Literária pela Unicamp) em 24/09/2016.