O AMANTE DE MATA HARI – 1919
Escritor lembra das histórias de José do Patrocínio Filho, o Zeca, publicadas a partir de 1919, em forma de folhetim na Gazeta de Notícias
O ano de 1919 foi saudado com grandes manifestações de alegria nas ruas. O país se alinhava entre os vencedores da Grande Guerra. A gripe espanhola, que matara entre 20 milhões de pessoas ao redor do mundo dava sinais de arrefecimento. Com o fim do governo Venceslau Brás, iniciava-se um novo ciclo da política.
Mas o presidente eleito, o velho conselheiro Rodrigues Alves, não chegou a tomar posse. Morreu no dia 16 de janeiro de 1919. O vice, Delfim Moreira, também estava doente. A constituição determinava a realização de novas eleições. A campanha política começou imediatamente. Ruy Barbosa era o candidato da oposição. O situacionismo ainda não se pronunciara, mas a luta política já incendiava as páginas da imprensa carioca.
Uma semana depois da morte de Rodrigues Alves um novo assunto surge nas manchetes. José do Patrocínio Filho, preso em Londres sob a acusação de espionagem a favor da Alemanha é deportado após 403 dias de prisão. Misto de jornalista, escritor, diplomata e empresário teatral, Zeca Patrocínio, herdeiro do “Tigre da Abolição”, cognome que celebrizou seu pai, é figura carimbada no Rio de Janeiro por sua tendência para meter-se em confusões.
No dia 9 de fevereiro de 1919 Patrocínio chega ao Rio de Janeiro. Antes que o navio atraque, uma lancha da Polícia Marítima vai ao seu encontro levando a bordo Cândido de Campos, secretário de redação da Gazeta de Notícias, com a missão de comprar as matérias que Zeca certamente escrevera sobre seu cativeiro na Inglaterra. A entrevista coletiva que concede, já com o navio no porto, estará nas manchetes no dia seguinte. E, dado o modo engenhoso como se defende, Zeca Patrocínio, que chegou a ser considerado traidor da pátria por sua ligação com os “boches”, vira herói nacional. E avia que publicará em breve a versão completa dos fatos nas páginas da Gazeta de Notícias.
O folhetim é um gênero em voga na imprensa brasileira desde meados do século XIX. Inaugurado por Joaquim Manoel de Macedo com A MORENINHA (1844), será utilizado por Alencar, machado e muitos outros nomes consagrados. Resistirá até o século XX, por exemplo, com Suzana Flag (pseudônimo de Nelson Rodrigues) nas páginas dos Diários Associados.
No dia 15 de fevereiro sai o primeiro capítulo de O SEPULCRO DOS VIVOS (publicado em livro mais tarde com o título de A SINISTRA AVENTURA. As vendas do jornal disparam. E continuarão a crescer à medida que se desenrolam os episódios. Hábil negociador, Zeca arranca de Salvador Santos, dono do jornal, cem mil réis por colaboração, numa época em que os medalhões da imprensa carioca recebiam entre 40 mil e 50 mil. Para não perder boquinha, ele começa a espichar a história com divagações, elucubrações e comentários até sobre a campanha eleitoral já em curso. Preocupado com a encheção de linguiça (e com os cem mil réis por artigo), Salvador Santos protesta: “Seu Patrocínio, você precisa dar um jeito de sair dessa prisão. Magriço como é, pode perfeitamente passar por entre as grades de uma janela”. E Zeca, com ar ofendido: “Meu Salvador, o senhor não sabe o que sofri no cárcere. Então pensa que é fácil fugir de uma prisão inglesa?” Com essas e outras desculpas, o folhetim rendeu-lhe mais de 20 artigos. Mas o assunto se esgotara.
Acabada a “sinistra aventura”, Zeca voltava à planície, caçando artigos de 30 mil réis para sobreviver. Mentiroso compulsivo, petulante, dado a crises emocionais (atribuídas ao abuso de drogas e álcool), era visto como caso perdido nos círculos literários e jornalísticos. A pecha de espião tornava inviável a volta à “doce França”, que considerava sua verdadeira pátria. Nesse aperto, procura o dono da Gazeta de Notícias para propor um novo folhetim. Promete revelar histórias ouvidas de companheiros de prisão que deixou de contar na primeira série. O patrão reluta, mas acaba por se dobrar à lábia de Zeca. E mantém a remuneração de cem mil réis por capítulo.
A publicação começa em abril de 1919. Por mais fantasioso que seja, logo Zeca se defronta com assustadora falta de assunto. É aí que surge, como seu companheiro de prisão, “O amante de Mata Hari”. Nos depoimentos à polícia inglesa, Zeca negara conhecer Margareta von Zeller, a célebre espiã Mata Hari, fuzilada na França em setembro de 1917. Talvez não tivesse estado com ela em Paris lá pelos idos de 1913, mesmo morando ambos na cidade. Já encontros em Amsterdam são mais prováveis. A essa altura a ex-bailarina exótica e femme fatale, já então uma senhora de 40 anos, de passagem pela Holanda, posa para uma fotografia não em nu frontal como na juventude, mas em trajes de matrona vitoriana.
Em 1915, Zeca passara a servir como ajudante consular nos Países Baixos. Amsterdam é uma cidade sem o brilho boêmio de Paris, o clima é péssimo e o custo de vida proibitivo para seu baixo salário. As colaborações com a imprensa carioca também escasseiam. Em junho de 1916, um anúncio de jornal pedindo um professor de português ou espanhol chama-lhe a atenção. Soa como boa oportunidade para complementar o magérrimo orçamento. É assim que entra em contato com um alemão chamado Loebel, que lhe apresenta Rene Levy, suíço de ascendência francesa, que logo conquista a confiança de Zeca. Encontram-se para trocar ideias em bares e cafés de Amsterdam (com as despesas pagas por Levy). Nessas reuniões, Zeca conhece vários outros membros do círculo de Levy. Todos interessados em aprender português e espanhol. Teria Mata Hari laços com esse grupo de espiões do qual o brasileiro fazia parte, ainda que apenas como “professor”?
Em setembro de 1917, no auge do “Caso Mata Hari” Patrocínio Filho exonera-se do cargo de auxiliar do consulado alegando insuficiência de meios para se manter em Amsterdam e embarca para a Londres com a companheira Antoinette. No vapor, para impressionar um militar belga chamado Emile Reul que se apresentara como “correio diplomático”, revela seus contatos com o grupo de Amsterdam. Diz que, como jornalista, seu objetivo era colher material para escrever reportagens sobre a rede holandesa. E só não o fizera antes por temer represálias. Mas agora estava disposto a contar às autoridades britânicas tudo o que sabia sobre a teia de espionagem alemã na Holanda.
Alertados pelo capitão belga, os policiais ingleses levam Zeca para interrogatório logo no desembarque. E apreendem-lhe o passaporte, recomendando que vá buscá-lo dois dias depois na Scotland Yard. Ainda sem perceber a enrascada em que se meteu, Zeca vai à Agência de Viagens Cook em busca de passagens de retorno ao Brasil. Há um navio que parte no dia 21 de setembro. A cabine dupla (para ele e Fon-Fon) custa 29 libras. Mas só poderá fazer a compra mostrando autorização para deixar o país, acompanhada do passaporte.
Quando s apresenta para recuperar o documento, é submetido novo interrogatório. Percebe que o serviço de contra-espionagem britânico sabe bem mais o que poderia imaginar. Indagam de onde tirou dinheiro para a viagem, já que em seu pedido de exoneração alega completa falta de meios para se manter em Amsterdam. Mesmo assim, saldou à vista dívidas em atraso com a locatária do apartamento e mostrou ter recursos mais do que suficientes para voltar ao Brasil. Além disso, confidenciou ao capitão Emile Reul ter recebido dos alemães a tinta invisível por eles usada na troca de correspondências secretas. A tinta era misturada na goma de colarinhos que, colocados de molho, tornavam-na utilizável. No depoimento à polícia Zeca confirmou a posse do dito material. Quanto à quantia em dinheiro justificou-a como resultante de objetos de valor que vendera ao deixar a Holanda. Recheado de inconsistências, o depoimento não convenceu as autoridades. José do Patrocínio Filho foi encarcerado na Brixton Prision onde aguardaria julgamento.
A notícia caiu nos meios jornalísticos e literários cariocas como verdadeira bomba. Zeca Patrocínio, o doidivanas, o faroleiro, o boquirroto, acusado de ser espião da Alemanha! Como era possível? Naquela altura o país já entrara na guerra após o afundamento de quatro navios brasileiros por submarinos germânicos em águas europeias. Assim, a primeira reação popular foi de revolta contra o “traidor”. Logo, porém, se levantariam vozes em defesa dele. Zeca era um mitômano. Inventava histórias para se engrandecer. Não passava de um Barão de Munchausen tropical. Mas o governo brasileiro não podia usar esse argumento para defendê-lo. Como explicar que um irresponsável, como o descreviam, podia exercer funções diplomáticas em nome do país?
A vida de Zeca corria perigo. Espiões eram punidos com pena de morte. Só a Inglaterra condenara mais de uma dezena à forca, entre eles o brasileiro Fernando Buschmann, executado na Torre de Londres a 19 de outubro de 1915. Mata Hari seria fuzilada em Vicennes a 15 de outubro, quando Zeca já se achava preso.
A possível pena de morte para Zeca comove o país. A mãe, dona Bibi, faz circular um pedido de clemência entre senhoras da sociedade. A primeira signatária é a esposa do conselheiro Ruy Barbosa. Nilo Peçanha, ex-presidente da república e então ministro das relações exteriores argumenta que enforcar o filho do abolicionista José do Patrocínio seria como executar o filho de Lincoln. Depois de muitas démarches, Zeca fica livre da justiça militar inglesa, mas é condenado à prisão até o fim da guerra.
A volta triunfal ao Brasil ocorre em fevereiro de 1919. Após o sucesso retumbante das memórias nos presídios londrinos, O SEPULCRO DOS VIVOS, Zeca publica na Gazeta de Notícias O AMANTE DE MATA HARI. Ainda que chame o protagonista de Frederico Brochner, sugere uma narrativa “à clé”, na qual o nome fictício encobre o personagem verdadeiro – ele mesmo. O certo é que, publicado o primeiro episódio, em 4 de abril de 1919, Zeca Patrocínio passa a ser considerado o brasileiro que namorou Mata Hari, fama que ele, cheio de falsa modéstia, não confirma nem desmente.
Transformado em celebridade, os pedidos de colaboração crescem a tal forma que não dá conta de atendê-los. Mas não os recusa. Contrata dois jovens “secretários” para escrever artigos, crônicas e “sueltos” em seu nome. Exige que seu “estilo” seja respeitado. E paga aos “fantasmas” metade dos 30 mil réis que diz receber. Quando os jovens descobrem que o falso autor ganham cem mil réis por peça, atacam-no à luz do dia em pleno centro da cidade e aplicam-lhe memorável surra. Zeca diz não saber por que apanhou.
Fonte: Correio do Povo/CS/Sinval Medina/Escritor em 06/04/2019