HOMENS PELA ESCRITA- PARTE 3/RIOBALDO
RETRATO DE RIOBALDO
RIOBALDO, O NARRADOR E PERSONAGEM DE “GRANDE SERTÃO: VEREDAS”
Com Riobaldo, o narrador e personagem de “Grande Sertão: veredas”, João Guimarães Rosa criou uma voz que virou modelo para as nossas ruminações sobre as mazelas do Brasil. Riobaldo rumina sobre sua convivência com diferentes tipos de jagunços que encontrou pelo sertão, “que é o mundo”. Neles se refletem tanto os antigos donos do poder, como os novos – mais políticos e ardilosos – que adaptam a retórica do progresso e da educação dos humildes para os seus próprios projetos de poder. Há personagem mais paradigmático hoje, meio século após a publicação de “Grande Sertão: Veredas”? O único traço que talvez não esteja ainda presente nos Riobaldos que todos nós somos hoje, é o profundo pesar, o exame de consciência sério que aparece nesse diálogo romanesco do narrador rosiano com seus leitores. Riobaldo, depois de participar ativamente nos horrores da jagunçagem, se pergunta se ele mesmo não teria também a cara do demônio. Ele procura entender por que e como se envolvera nessa vida e qual é sua culpa nas atrocidades. E, para tal, ele encontra razões de sobra: externas e passivas (ele nasceu entre os humildes mais indefesos), mas também internas e ativas: as amizades e os elos afetivos que o atraíram para uma rede de proteção que permitiu conquistar o poder.
Quem é, portanto, esse velho fazendeiro Riobaldo que nos fala, confortavelmente instalado na varanda de sua fazenda? Ele ora se apresenta como um dos jagunços e líderes – o temível Urutu Branco, que absorveu e dominou todas as artimanhas mais demoníacas da jagunçagem a ponto de levar a guerra jagunça ao seu fim; ora ele se chama ele mesmo de “pobre menino do destino”, perdido sem mãe nem pai, que segue qualquer “viajante como cachorro magro em ponto de rancho”. Embora saibamos bem mais da vida desse personagem do que de Diadorim, é igualmente enigmático seu caráter. Como entender essa voz lutuosa do filho da Bigrí e do Selorico Mendes, que pertence, de um lado, ao velho mundo patriarcal de fazendeiros patrícios enraizados na terra, do outro, ao mundo dos violentados, seduzidos ou oprimidos, que não têm onde cair mortos? Bigrí evoca claramente a moça de origem indígena, agregada humilde, que provavelmente teve seu filho depois de seduzida ou violentada pelo patrão e que continuou sendo levada e assediada por outros depois (como indica o ódio que Riobaldo tem de um certo Gramacedo).
Embora Riobaldo, depois da morte da mãe, tenha sido acolhido pelo “padrinho” Selorico Mendes, vivendo por um tempo na “lordeza”, ele nunca consegue se identificar plenamente com esse simpático falastrão, entusiasta da jagunçagem (mas só da boca para fora). À procura de um pai de verdade ele se lança de novo no sertão de verdade, segue Zé Bebelo, o reformador progressista que promete política, ordem e educação; ele reencontra o "menino” valente e rico que tanto o impressionara na sua infância – e que agora se revela como o jagunço Reinaldo, e depois como seu amigo-amor mais profundo, Diadorim; outro encontro marcante é o grande líder Joca Ramiro, pai de Diadorim; nele Riobaldo vislumbra de novo uma figura paterna de força e bondade; mas um dos aliados de Joca Ramiro, o facínora e traidor Hermógenes, termina por lançar dúvidas também sobre essa promessa de salvação.
Todos os personagens, amados e odiados, admirados e repugnados, apresentam-se como equívocas miragens da ordem e da lei que tanto faltaram na infância de Riobaldo. Não que não tivesse conhecido ordem e bondade – porém somente as conheceu na forma demasiadamente dócil e meiga da mãe humilhada. Faltou a aura de respeito e autoridade que confirma a validade das leis. Assim, a intensidade dos sentimentos por Diadorim, que combina traços de delicadeza feminina com valentia viril ímpar, captura a imaginação de Riobaldo a ponto que seu fascínio não lhe deixa escolha. Desde o primeiro encontro com o “menino”, que mais tarde se revelaria como Reinaldo-Diadorim, Riobaldo sente: “entendi em mim: direito como se... tivesse acertado de encontrar, para todo sempre, as regências de alguma a minha família.”
Não há imagem mais compreensível, tocante, fascinante – e preocupante – que Riobaldo para refletir nosso apego às relações afetivas, inconscientes, sorrateiras com a grande família brasileira: nossa aposta na “segurança” e “proteção” que providenciaria, nossa tolerância dos acertos e jeitos que um clube de chefes e donos do poder daria nos problemas complexos que é o sertão do mundo (globalizado).
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Kathrin Rosenfield (Professora da UFRGS, Graduada em letras pela Universidade Paris III, mestre em Antropologia Histórica pela escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e doutora em Literatura pela Universidade de Salzburg) em 22/08/2015