UMA SÓ LITERATURA
GAY / LGBT / QUEER
No poema ALCACHOFRA, a escritora Angélica Freitas, a famosa Amélia da canção de Mário lago e Ataulfo Alves foge com a não menos célebre Mulher Barbada, aquela que habita circos pelo interior do País, e vai morar num barraco às margens de um arroio nos confins do Rio Grande do Sul.
Mas longe de viverem felizes para sempre, o relacionamento das duas é tedioso e marcado por elipses – ou “misteriosos pontinhos pretos”, como escreve a poeta. E acaba, após uma DR divertidíssima e cheia de ironia, com a Mulher Barbada zarpando num navio de bandeira grega, no qual vira marinheiro. Amélia, como na canção, volta a ser a Amélia que todos os homens cobiçam: sem a menor vaidade.
O poema de Angélica foi publicado no livro UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO (Companhia das Letras, 2017), e representa muito bem o universo indômito da autora, uma das vozes mais célebres da poesia gay brasileira contemporânea. Sim, literatura com adjetivo: gay ou queer ou LGBT ou… O debate continua.
Ainda mais depois da publicação, no final de 2018, da coletânea POESIA GAY BRASILEIRA (Editora Machado, 2017), seleção de 127 poemas de 44 autores dos mais variados gêneros e orientações sexuais do Brasil. “Foi a forma que encontramos de furar o preconceito contra a orientação sexual não dominante: pela literatura”, diz a jornalista Marina Moura, uma das organizadoras do livro e ela mesma integrante da antologia, onde ALCACHOFRA também foi publicado.
“Foi um acerto de contas literário, já que se trata da primeira coletânea de poemas assumidamente gays do Brasil”, completa Amanda Machado, outra organizadora. Como escreve o ex-deputado federal e ativista da causa gay Jean Wyllys na apresentação do livro, “é um documento fundamental não só para a literatura, mas para a história”.
Para a história porque, até pouco tempo atrás – bem pouco tempo atrás – falar do universo gay no meio literário não só era um desafio político, mas também um tabu. A ponto de o poeta paulistano Mário de Andrade, um dos fundadores do modernismo brasileiro, esconder sua orientação homossexual por décadas a fio. A ponto de o também escritor Pedro Nava se matar com um tiro na cabeça para não conviver publicamente com sua bissexualidade secreta, chantageado que era por um garoto de programa. O apagamento, nesse caso, sempre foi a regra.
Mas poemas assumidamente gays não significam poetas assumidamente gays. A coletânea, embora tenha uma prevalência de escritoras e escritores de orientação homossexual ou bissexual, também tem notórios héteros, como Hilda Hist, Paula Taitelbaum e Carlos Drummond de Andrade – que não escondia até uma certa “repugnância” pela homossexualidade, que considerava, como declarou à revista Isto É por ocasião do suicídio de Nava, “um desvio, um problema de ordem médica”.
Só que o “problema”, na ótica de Drummond, está longe de ser novo. Há pelo menos 150 anos, a escritora maranhense Maria Firmina dos Reis já cantava amores lésbicos em poemas como A UMA AMIGA, ELA E AH! NÃO POSSO, publicados em 1871 no livro CANTOS À BEIRA-MAR – embora sem a audácia, para a época, de admitir suas escolhas: “Se dizê-la é meu empenho/reprimi-la é meu dever/ Se se escapara dos meus lábios/Oh, Deus, - fazei-me morrer!”, escreveu sobre sua musa inominada em AH! NÃO POSSO – que também integra o volume de POESIA GAY BRASILEIRA.
A coletânea é um sucesso e continua sendo lançada em eventos pelo Brasil afora, mas o debate sobre a relevância de nominar ou não uma literatura não heteronormativa está apenas no começo. Afinal, existe uma literatura gay? E, caso exista, como chamá-la?
Angélica, por exemplo, se diz “resistente a rótulos”, mas reconhece o papel fundamental que a literatura LGBT (a expressão é dela) teve em sua formação humana e literária. “Esses livros me deram força e me confortaram, mas mais importantes que isso foi entender que houve muita luta, durante toda a história da humanidade, para que nossa existência fosse respeitada. E que uma vida digna, como lésbica, envolve certa medida de luta, seja num nível micro, sendo visível para a família, para os vizinhos, no trabalho, ou num nível macro, de ativismo. Escrever poesia acho que está a meio caminho entre micro e macro, talvez mais para macro”, relata.
O romancista Samir Machado de Machado, autor de HOMENS ELEGANTES (Rocco, 2016), que tem como protagonista um gay no Brasil Colônia do século XIX, prefere o termo queer – uma gíria do inglês adotada internacionalmente para designar um amplo espectro de populações que não seguem o modelo de heterossexualidade ou binarismo de gênero. O termo designa, literalmente, um comportamento excêntrico, raro, estranho.
“A literatura queer é toda aquela que, de alguma forma, dialoga com anseios e elementos de interesse desse leitor”, pontua Machado. “Não é uma mera questão de livros que contenham registros emocionais de autores LGBT ou que se identifiquem como tal. Um autor se identificar como gay, por exemplo, não significa que ele escreva necessariamente literatura gay”, conceitua.
A recíproca também pode ser verdadeira, como exemplifica Samir: MOBY DICK (Melville, 1851) é um livro de grande carga homoerótica, com dois homens, Ishmael e Queequeg, que se unem num ritual simbólico de casamento numa história repleta de simbolismos fálicos, ao passo que o ponto central da ILÍADA (Homero, cerca de oito séculos antes de Cristo) é a ira de Aquiles ao ter seu amante morto por Heitor.
VISIBILIDADE ALÉM DA ESTANTE PROIBIDA
Não resta dúvida que manifestar a orientação sexual se transformou num ato político também na literatura. O professor e escritor Vitor Necchi, autor do livro de crônicas NÃO EXISTE MAIS DIA SEGUINTE (Taverna, 2018), cita o trabalho coordenado pela pesquisadora Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília, para defender a “afirmação de espaço” dos escritores não-heteronormativos contra o apagamento promovido pela historiografia oficial: o que não é nomeado não existe, diz ele.
Na pesquisa de Dalcastagnè, desenvolvida desde 2003 e que teve uma segunda parte publicada em meados do ano passado, o perfil do romancista brasileiro não deixa dúvidas sobre o caráter hegemônico e excludente da literatura de mercado: homem, branco, classe média, heterossexual, nascido no eixo Rio-São Paulo e que tem como protagonistas personagens exatamente com o mesmo recorte social.
No quesito do levantamento que se refere à “orientação sexual dos personagens”, o índice de heterossexuais, que era de 88% no início dos anos de 1960, baixou para 85% na década entre 2005 e 2014. protagonistas ou não com outras orientações, como homossexuais ou bissexuais, representam respectivamente 3,2% e 4,4% do universo da literatura publicada pelas grandes casas editoriais no Brasil. O espaço para manifestações fora da heteronormatividade está estagnado há 50 anos.
Necchi lista alguns pressupostos básicos para uma literatura LGBT que rompa com esse apagamento mercado: prevalência (mas não exclusividade) de autores gays, universos e personagens com essa mesma orientação sexual e a condição homossexual como determinante de aspectos de vida e de produção. “Ou seja, uma literatura queer ou LGBT deve romper a clandestinidade que sempre foi destinada aos autores e personagens homossexuais. A tal da estante proibida que tinha na casa daquela tia ou tio gay”, menciona. Ou, como lembra Necchi, a prateleira de “literatura de gênero” que havia na livraria Bamboletras no final dos anos de 1990.
Também destaca que uma literatura engajada em apresentar a realidade não normativa deve ir além da questão sexual e se ocupar de recortes ainda mais radicais e políticos, como classe, raça e escolaridade. O que ele percebe, por exemplo, é uma literatura gay centrada em autores ou autoras brancos, de classe média e boa escolaridade – não muito diferentes do perfil detectado por Regina Dalcastagnè.
“Homossexuais negros e pobres, homens e mulheres, sofrem um preconceito muito mais severo no dia a dia. Enquanto a classe média luta pelo casamento gay e pela possibilidade de adoção por casais homoafetivos, que são lutas justas, a população gay das periferias luta é para se manter viva. E isso tem que aparecer numa literatura de gênero”, argumenta Necchi.
O recorte de classe e raça é uma referência explícita a James Baldwin, autor do romance O QUARTO DE GIOVANNI (1956). Publicado pela primeira vez no Brasil em 1967 pela editora Civilização Brasileira, é considerado um pioneiro na normatização, por meio da literatura, de um relacionamento gay. A Companhia das Letras relançou o romance, com nova tradução, em 2018.
Necchi conta que teve o primeiro contato com o livro em uma edição da Abril quando tinha 14 anos, atraído pela sinopse da contracapa. O romance narra a paixão de um norte-americano rico e branco – Baldwin nasceu negro e homossexual no Harlem, em 1924 – por um barman italiano e se passa em Paris, cidade para onde o escritor se transferiu em 1948. O editor de Baldwin, que já havia escrito o romance GO TELL IT ON THE MOUNTAIN (1953, inédito no Brasil), recomendou que ele queimasse os originais.
UM NICHO EM EXPANSÃO
Angélica Freitas, uma das vozes mais célebres da poesia gay brasileira contemporânea, lembra que teve o primeiro contato com a literatura de gênero não normativo numa viagem à Escócia, em 1991. “Tinha 17 anos, morava em Pelotas e sair do armário não era uma alternativa. Então, nessa viagem, foi importantíssimo entrar numa Waterstones [rede de livraria britânica], em Glasgow, ir até a seção gay and lesbian, que tinha duas ou três prateleiras, e ficar folheando livros escritos por lésbicas. Acabei comprando BEING LESBIAN, da Lorraine Trenchard [nunca trazido no Brasil], que tenho até hoje, todo amarelado, folhas caindo”, diz.
A poeta conta que escreveu UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO porque queria ler um livro de poemas sobre mulheres que não desse por suposto o que é o feminino. “É um livro sobre mulheres escrito por uma mulher lésbica. Por isso acho importante escrever sobre a existência lésbica: já houve tanto apagamento. Precisamos escrever nossas histórias constantemente”, defende.
A escritora Natalia Borges Polesso, que ganhou o Jabuti de narrativas curtas em 2016 com o livro de contos AMORA (Não editora, 2015), também destaca a emergência de autoras e autores identificados com temáticas não heteronormativas. “A literatura de autoria LGBT sempre existiu, personagens gays sempre estiveram por aí, bem ou mal representados, mas creio que ultimamente o mercado tem se aproveitado da criação e expansão desse nicho. Queremos nos ver em histórias, é claro. Leremos essa literatura. Mas eu espero que ela seja lida por todos, indistintamente”, lembra.
AMORA reúne protagonistas exclusivamente lésbicas nos seus 33 contos mas, como adverte Natalia, não se trata de um livro “sobre” elas, e sim “com” elas. “Foi aí que tudo mudou”, relata a autora. A partir de um universo narrativo em que a orientação sexual teria uma perspectiva dominante, ela se propôs a desenvolver “melhor e com mais cuidado” as suas personagens. O livro ganhou uma forma e discurso.
“Eu acredito que a gente escreve com o corpo todo, com as vivências, com o que sentimos na pele e debaixo dela. Se a mina existência neste mundo é uma existência composta pelo lesbianismo, é claro que isso vai aparecer de alguma maneira no meu texto. Não necessariamente como temática, mas como um modo de ocupar os espaços, de viver essas experiências”, justifica Natalia.
Militância? “Acho que sim”, responde Natalia. “Por que não? A militância está na vida. Se ela vaza para a literatura é porque está bem arraigada no viver da gente. Se não for assim, é pastiche. E também não há problema em termos crítica e entretenimento separadamente. A vida é assim”, completa a autora.
EM BUSCA DE MAIS REPRESENTATIVIDADE
Nanni Rios, que em 2014 abriu a livraria Baleia (agora em novo local, na rua Fernando Machado, 85, em Porto Alegre/RS), não vê qualquer diferença entre a literatura produzida por pessoas heterossexuais, homossexuais, bissexuais ou transexuais. A diferença, segundo ela está na validação de algumas vozes em detrimento de outras. “É aí que as vozes tidas como dissidentes ficam em desvantagem. Por isso, penso mais numa escrita de representatividade do que propriamente literária: é para reparar essa desvantagem que os autores LGBT se aglutinam em torno desse rótulo como quem diz: existimos”, conceitua.
Nanni diz que a Baleia é a única livraria da cidade a dar “destaque” para literaturas historicamente preteridas, como de maioria LGBT, preta e feminista - “feminista mesmo, e não feminina, como se convencionou dizer por aí”, salienta a livreira. Mais do que ter os referidos títulos no seu acervo, a Baleia também abriga encontros, reflexão, debates e cursos que evidenciem” o que a história da literatura não soube reconhecer”. Como INTRODUÇÃO À LITERATURA GAY, por Samir Machado de Machado em 2016, e as oficinas de escrita de João Gilberto Noll, entre 2015 e 2017.
“A livraria surgiu com um propósito simples: ter um negócio só valia a pena se fizesse alguma diferença socialmente, senão não me interessava o perrengue”, relata Nanni – que, nas horas vagas, ataca de DJ, produtora cultural e editora. As ênfases LGBT e feminista vieram naturalmente, pela vivência e necessidade da própria livreira. “Percebi muito reconhecimento pelo trabalho de evidenciar essas vozes e também a chegada ao mundo dos livros de gente que nunca tinha se imaginado ali”, festeja.
Segundo Nanni, o mercado “ama” a literatura LGBT por um motivo bem simples: “tem quem compre”. Mas ela não se ilude. “Estamos longe de ver nascer e muito menos de se consolidar uma paridade: eventos, festivais literários e catálogos com casting 100% masculino-cis-heteronormativo ainda não chocam como deveriam”, pondera.
E vai além: “O mercado nunca vai ser agente da transformação social, pois se as necessidades e carências forem sanadas, não existe mais mercado. Logo, ocorre, na essência, a manutenção dessa desigualdade. Na empreitada que é manter a Baleia, não me importa o mercado, mas a vida individual de cada pessoa impactada pelo novo horizonte que se abre quando há identificação e reciprocidade”.
Visando justamente “dar visibilidade ao invisível”, a autora trans Atena Beauvoir criou a editora Nêmesis – a deusa grega da vingança. “Meu objetivo é justamente esse: uma vingança impressa por todo o sofrimento existencial que a sociedade nos faz passar”, define. Ela é autora dos poemas de LIBERTÊ (2017) e dos CONTOS TRANSANTROPOLÓGICOS (Taverna, 2018).
O foco da Nêmesis, segundo Atena, é a literatura invisível, transantropológica e queer, produzida por transgêneros binários e não-binários e exclusivamente sobre pessoas trans. “Nem toda literatura LGBT é uma literatura queer, já que se queer pressupõe um rompimento com a linealidade, entre aquilo que está em ordem e aquilo que não está em ordem. Se queer, seja no dia a dia, seja na literatura, é permanecer destoante, é fomentar a permanência dessa identidade destoante. Se busca a normalidade, mesmo no mundo LGBT, não é queer”, explica. O primeiro livro da editora será lançado neste mês – PHÓDA: POESIA, FILOSOFIA E SEXUALIDADE, da própria Atena. O volume é uma coletânea de poemas baseados em HISTÓRIA D sexualidade, DE Michel Foucault. A Nêmesis abriu um edital para receber originais de autores e autoras trans de todo o Brasil, para publicação em 2020. O prazo é 30 de novembro.
LIBERDADE PARA DISCUTIR A PRÓPRIA CONDIÇÃO
Premiado pelo volume de contos AS COISAS (Record, 2018), sua estreia literária, Tobias Carvalho também ajudou a romper a invisibilidade do tema da homossexualidade ao reunir 23 histórias de protagonistas gays – a diferença em relação a AMORA, de Natalia Polesso, é que Carvalho investe mais no universo undergruound, de chats, boates e saunas, do que em relatos domésticos. O escritor não está muito convencido da importância de uma literatura LGBT.
“Não acredito nesse termo porque não se sabe se a obra tem que abordar personagens LGBT ou se o autor tem que ser [LGBT] ou os dois. Não acho que a vida do autor deva importar. Me parece que essas histórias sempre existiram, apenas o mercado agora engoliu tudo e v~e com bons olhos”, diz Carvalho.
O autor tampouco defende a literatura como resistência ou como palanque. “Um escritor pode militar como quiser na vida pessoal, mas sem que isso vá para a sua obra. Do contrário, o valor literário se perde. Assim como escritores héteros podem e já escreveram histórias com gente queer, escritores queer podem escrever histórias sobre gente hétero. Ou sobre aliens. Ou dinossauros. A preocupação com o lugar de fala é importante e justa no ambiente dos discursos e na vida em sociedade, mas nada tem a ver com a literatura”, alfineta.
Trata-se de uma voz dissonante. Samir Machado de Machado, que ministrou o curso INTRODUÇÃO À LITERATURA GAY em 2016, também menciona essa pressão pela invisibilidade de uma escrita não heteronormativa que, aos poucos, com o surgimento de editoras e livrarias, vem sendo construída. HOMENS ELEGANTES, vencedor do prêmio Açorianos de 2017, teve boa recepção de público e crítica mesmo apresentando uma história incomum de capa e espada com um protagonista homossexual.
“Volta e meia recebo mensagens falando da satisfação de ler uma história de aventura com um herói gay. O gay, nesse caso, não é um vilão afeminado, não é o melhor amigo do herói ou o alívio cômico da trama”, pontua o escritor.
Para Machado, um protagonista LGBT também pode descobrir uma cidade perdida, ir ao espaço ou resolver um crime. A única diferença é que ser gay, ou negro, ou mulher, numa sociedade preconceituosa, fará apenas com que ele ou ela precise contornar situações com as quais o típico herói de aventuras geralmente não se depara. “Representatividade também trata disso: ter a liberdade de não precisar discutir sua própria condição, ser apenas o protagonista da história”, pondera Samir Machado de Machado.
Fonte: Jornal do Comércio/Caderno Viver/Flávio Ilha/Jornalista e escritor, autor de LONGE DAQUI, AQUI MESMO (Diadorim, 2018) em 07/04/2019