RECONHECIMENTO AOS 70 ANOS
CONCEIÇÃO EVARISTO tem seus dois primeiros livros relançados depois de ganhar exposição em São Paulo e ser uma das primeiras atrações confirmadas da Flip 2017.
Aos 70 anos, Conceição Evaristo conquistou reconhecimento dedicado a poucos escritores brasileiros – é hoje tema de uma exposição em cartaz no Itaú Cultural, em São Paulo, e foi uma das primeiras atrações confirmadas para a próxima Flip, em julho. Nem sempre foi assim: até hoje a escritora guarda em casa exemplares das edições originais de seus primeiros livros, que só conseguiu lançar a partir de 2003, de forma independente e sem distribuição adequada. Só agora esses títulos ganham uma edição acessível ao amplo público leitor, com o relançamento de BECOS DA MEMÓRIA e PONCIÁ VICÊNCIO pela Pallas.
Natural de uma favela de Belo Horizonte, Conceição se tornou professora, com doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense, mas não aceita o discurso de que a meritocracia supera desigualdades no Brasil. Em entrevistas, costuma dizer que ela é a exceção que confirma a regra. E é a respeito de quem vive sob a regra que a autora escreve: seus personagens são oriundos de populações negras e pobres, marginalizados que muitas vezes sequer cogitam a possibilidade de mudar de vida.
Escrito entre 1987 e 1988, BECOS DA MEMÓRIA só foi lançado quase 20 anos depois, em 2006, após a escritora publicar poemas e contos em revistas e ter conseguido boa repercussão com PONCIÁ VICÊNCIO (2003). O romance tem como foco a vida de Maria-Nova, jovem sensível e um tanto melancólica, que se assusta e se maravilha com as histórias das pessoas próximas de si, familiares e outros habitantes da favela em que nasceu. O espaço, no entanto, está em risco por conta de uma construtora que, aos poucos, desapropria quem vive nos barracos para ali construir um condomínio.
REALIDADE COLETIVA E FORMAÇÃO PESSOAL
Mais do que um documento sobre uma realidade social, BECOS DA MEMÓRIA é um singular romance de formação. Etão ali as angústias de quem vê a idade adulta se aproximar, bem como o calor das descobertas do corpo. No entanto, diferentemente das narrativas de formação mais conhecidas, como DEMIAN, de Hermann Hesse, ou O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO, de J. D. Salinger, não é por meio de viagens ou pela descoberta de leituras que a protagonista compõe sua identidade e seu modo de encarar o mundo. É a partir do que ouve e observa em torno de si que Maria-Nova consegue compreender como sua família se formou e, a partir de exemplos próximos, descobre em si a força para lidar com seus desejos e dificuldades.
O passado familiar também é um dos temas centrais de PONCIÁ VICÊNCIO, romance que leva o nome de sua personagem principal. Ponciá também vive em um ambiente urbano, onde o passado rural de sua família é apenas um espectro distante. Seu sobrenome foi herdado do dono das terras nas quais seus antepassados viviam como escravos – ali, todos eram despojados de nomes de família, já que eram posse de um mesmo senhor.
Não tendo um nome que ligue a história de seus familiares, Ponciá carece de raízes para fortalecer sua identidade. Ela também enfrenta sucessivas gestações frustradas, em que perde a criança que gera. Sem conseguir se apoderar do passado, não é capaz de criar gerações para o futuro.
Além dos dois romances inaugurais, que a editora Pallas acabada de relançar, Conceição Evaristo também teve há pouco o volume de contos INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE MULHERES (2011) e POEMAS DA RECORDAÇÃO E OUTROS MOVIMENTOS (2008) republicados pela Malê, que lançou em 2016 HISTÓRIAS DE LEVES ENGANOS E PARECENÇAS (2016). É uma oportunidade de conhecer o trabalho de uma escritora que, com propriedade, escreve sobre realidades que muitas vezes ficam de fora da literatura brasileira.
Fonte: ZeroHora/Mundo Livro/Alexandre Lucchese (alexandre.lucchese@zerohora.com.br) em 23/06/2017.