CARLOS HEITOR CONY
(1926 – 2018)
Crítico da ditadura e premiado autor de romances, jornalista e escritor morreu no Rio de Janeiro, aos 91 anos.
Talvez tenha sido a dificuldade com a palavra falada que levou Carlos Heitor Cony, que morreu na última sexta-feira (em janeiro) de falência múltipla dos órgãos, aos 91 anos, a envolver-se com a palavra escrita. Na infância, o menino que se tornaria um dos grandes cronistas do país e referência para jovens que nos anos de 1990 queriam fazer jornalismo e literatura ao mesmo tempo mal conseguia se expressar – o fez pela primeira vez somente quando provocado por um susto.
Nascido em 14 de março de 1926 na zona norte do Rio de Janeiro, Cony preocupava os familiares com sua quietude. Aos quatro anos, era considerado mudo. Foi ao ver um hidroavião vermelho em uma praia de Niterói que emitiu o primeiro som – ficou surpreso com o aparelho flutuando sobre o mar em direção à areia. Aos oito anos, trocando o “g” pelo “d”, foi coagido em uma festinha a falar a frase “Dona Jandira adora o fogão”. Pronúncia errada e riso certo dos coleguinhas, não se deu por vencido e desafiou a si mesmo: escreveu, repetidas vezes, a palavra “fogão”, provando que, se vacilava na linguagem falada, sabia dominar a escrita. O problema da pronúncia seria resolvido com uma cirurgia aos 15 anos.
Outra influência para o texto veio do pai, Ernesto Cony Filho (1894-1985), jornalista a quem substituiu na Gazeta de Notícias da Câmara Municipal do Rio e que viraria, depois de morto, protagonista do celebrado livro QUASE MEMÓRIA, lançado pelo filho em 1995. Mas foi somente aos 26 anos que Cony ingressou oficialmente na profissão do pai, recebendo o cargo de redator na Rádio Jornal do Brasil, em 1952.
DE QUASE PADRE A QUASE HERÓI
Antes de lançar-se à escrita, Cony teve uma experiência como seminarista, que foi, em certo sentido, significativa para desenvolver-se como escritor. Entre os 12 e os 19 anos, ficou enclausurado no Seminário Arquidiocesano de São José, desfrutando clássicos gregos e romanos, além de estudar outras línguas. A imersão virou narrativa quase autobiográfica de INFORMAÇÃO AO CRUCIFICADO, seu segundo livro, lançado em 1961, que retrata a vida de um jovem com dúvidas sobre a vocação de padre.
Se a vida celibatária desenrolaria a veia do ceticismo anos mais tarde, colocando-o crítico em relação a dogmas e grupos – reconhecendo-se como “anarquista entristecido, humilde e inofensivo” em discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 2000 – o golpe de 1964 o fez se posicionar. Em textos diários à imprensa, Cony chamava o novo governo de “quartelada” e criticava os expoentes do regime.
Sua contrariedade com a ditadura era eminente, tanto que Moacyr Scliar (1937-2011) o definiu como “nosso respiradouro”, e Luis Fernando Verissimo contou que a leitura de cada parágrafo do cronista costumava ser seguida das interjeições “É isso mesmo!” e “Dá-lhe, Cony!”. O engajamento rendeu perseguições à família, processos pelas crônicas consideradas ofensivas e até um mês de prisão. Mais tarde, Cony esclareceu que a luta em palavras era mais um ato de consciência do que motivação política.
Ao aceitar o convite de Adolpho Bloch para integrar o grupo editorial que incluía a revista Manchete, Cony foi visto pela esquerda como um traidor – o famoso empresário de mídia dava alicerce à ditadura. O escritor reagiu às ofensivas de quem antes o via como aliado publicando PILATOS, romance de 1974 que o autor considerava uma crítica à direita e à esquerda e que abriria um hiato em sua carreira de romancista, quebrado somente 21 anos depois, com QUASE MEMÓRIA.
Em um texto de maio de 2003 para a Folha de S.Paulo, jornal para o qual escreveu de 1993 até morrer, Cony falou sobre as sucessivas solicitações de estudantes que queriam saber sobre a relação do jornalismo com a literatura. Definindo a palavra como material plástico que serve para diferentes propósitos, resumiu em uma frase o ofício da escrita, mas que também parece definir a vida – principalmente a do homem diverso que foi: “Sinos que alegram as manhãs do Senhor são os mesmos que dobram em finados”.
O corpo de Cony será (foi) cremado, e o ritual a que teria direito na Academia Brasileira de Letras foi dispensado por ele mesmo em orientação deixada por escrito.
LIVRO ESSENCIAIS
O VENTRE (1958)
Em seu livro de estreia, Carlos Heitor Cony narra a trajetória de um jovem desprezado pelo pai. A obra foi inscrita em concurso literário promovido pela Academia Brasileira de Letras (ABL), mas não premiada por ser considerada forte demais para os padrões da época.
PESSACH: A TRAVESSIA (1967)
Fazendo analogia com a libertação bíblica do povo judeu, o livro também relata os principais dilemas da esquerda no Brasil dos anos 1960. Na história, Paulo, que rejeitava suas origens e não se posicionava politicamente, se vê transformado em um homem engajado de todas as formas.
PILATOS (1974)
Último romance de Cony antes de uma ruptura em sua produção e uma de suas obras mais emblemáticas, faz uma sátira sobre a situação política no Brasil. A trama conta a epopeia às avessas de um homem que vaga pelas ruas do Rio levando seu órgão sexual num vidro de compota.
QUASE MEMÓRIA (1995)
Marca o retorno de Cony ao romance depois de 21 anos. A narrativa circular traz os registros das reminiscências do narrador a respeito do pai morto que lhe apareceu em um sonho. Vencedor do Prêmio Jabuti, na categoria ficção, e do Livro do Ano, da Câmara Brasileira do Livroi, ambos em 1996.
A CASA DO POETA TRÁGICO (1997)
Com esse livro, Cony ganhou mais um Prêmio Jabuti, na categoria ficção, e mais um Livro do Ano, da Câmara Brasileira do Livro. A trama retrata um publicitário que, em meio a um cruzeiro mediterrâneo, fica entediado com o que encontra e passa a desprezar os demais passageiros.
Fonte: Zero Hora/Segundo Caderno em 08/01/2018