UM LIVRO
GRANDE AUTOR, GRANDE ROMANCE
Sinval Medina é o nome do autor, e o livro chama-se MEMORIAL DE SANTA CRUZ.
Trata-se de um dos melhores romances brasileiros do século XX, e recebeu elogios de Carlos Drummond de Andrade. Publicado, em 1983, pela editora Mercado Aberto, de Porto Alegre, é narrado em primeira pessoa por Brasil de Santa Cruz. O personagem é um mestiço pobre nascido em data e local imprecisos. Ele próprio não sabe estabelecer com apuro sua origem: “(...) só sei que passei a existir aqui mesmo neste Brasil de Deus, e a verdade não é a da certidão do cartório, que essa eu forjei quando foi preciso: minha certidão de certeza é a vida, é estar vivo e sofrido, ontem forro, hoje prisioneiro, mas lúcido da ideia, historiando o que fui e o que vi desde que me dei por gente” (p. 9).
O trecho inicial do livro que reproduzo acima já apresenta de forma muito clara o pensamento e o idioma de Santa Cruz. A semelhança de Gabriel Garcia Marquez (1927 – 2014), em “Crônica de uma Morte Anunciada”, Sinval Medina cativa o leitor logo na primeira página ao antecipar parte do futuro do personagem. Além de uma contravenção, o romancista adianta que o herói está atrás das grades.
E a promessa de aventura não é em vão.
Consultei Medina acerca da repercussão do romance à época de seu lançamento: “O livro foi bem recebido e alcançou repercussão favorável quando foi lançado. Talvez seja, ao lado do “Tratado da Altura das estrelas”, meu romance que mais referências críticas positivas tenha suscitado. Guardo com carinho um bilhete de Carlos Drummond de Andrade com referências elogiosas ao texto. Quanto ao público, não consigo avaliar. O editor jamais me enviou relatórios de venda. Estou certo, porém, que o Memorial representou uma inflexão importante na minha carreira. Com ele deixei de ser uma promessa para me tornar um autor que merecia ser levado a sério”.
Os dois primeiros romances publicados pelo autor gaúcho já haviam colecionado elogios. LIBERDADE CONDICIONAL (1980) lançado pela editora Codecri, e CARA, COROA, CORAGEM (1981), que levou o selo da editora Nova Fronteira, apontaram luzes para o jornalista porto-alegrense, em especial por retratar momentos pungentes da história brasileira das décadas de 1960 e 1970 com vigor e criatividade estilística. Tal caminhada literária consolidou-se em definitivo com MEMORIAL DE SANTA CRUZ.
A condição, relatada por Brasil de Santa cruz, aponta uma óbvia aproximação com o povo brasileiro: mestiço, pobre, sofrido, subordinado. Ademais, o nome do protagonista reforça essa conexão.
Na apresentação do livro, a professora Regina Zilberman observa: “O personagem sintetiza, pois, a condição do trabalhador brasileiro, atravessando a história e o tempo aos trancos e barrancos, sem, todavia, abdicar de sua dignidade, nem desistir de sua luta por um lugar ao sol” (p. 5).
O personagem central de Medina, por escolha e em certos momentos por falta de opção, é um faz-tudo: circense, marinheiro, pescador, seringueiro, operário, cantor de modinhas, revolucionário, caminhoneiro, jogador de futebol, capanga, soldado e bandido, entre outros afazeres. Como se percebe, a natureza do herói é o trabalho. Longe de ser panfletário, o romance de Medina, de certa maneira, dá voz ao trabalhador brasileiro e identifica-o em um ambiente muitas vezes corrupto e hostil.
Santa Cruz vai contando sua trajetória que se confunde com a história do Brasil no século XX. Ele presencia episódios como a Revolta da Chibata, acompanha a Coluna Prestes, e participa da Revolução de 30, só para ficarmos em alguns poucos exemplos. Em suas andanças, ele se desloca por várias partes do país como Amazônia, Pantanal, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, sempre na condição de homem simples e subalterno. As peripécias de Santa Cruz apresentam também aspectos da cultura brasileira e da nossa sociedade, em especial quando aborda injustiças e desmandos. A certa altura, o protagonista diz: “Tenho para mim que nesse país é muito pouco o valor que se dá à vida humana, diferença existindo, pra isso de morrer, entre mosca e homem, é um tantinho assim de tão pequena, um quase nada”. (páginas 9 e 10). O tom é perturbador porque é profético.
Há, ainda, espaço para as relações amorosas do herói. Tais romances são marcados por tragédias, desentendimentos e abandonos. Afinal, Santa Cruz não pode criar raízes, é “viajor inquieto e constante” (p. 262), precisa seguir em frente ainda que deixe muito para trás, inclusive filhos. Vale ressaltar, também, a constante aparição do número sete no decorrer do texto: sete pragas (p. 16), os sete mares (p. 137), sete guerreiros (p. 174), sete dias e sete noites (p. 208), sete fôlegos (p. 225), sete desmaios (p. 253), entre outros. E o sete é sinônimo tanto de perfeição como de mentira.
A principal característica do romance é a sua arquitetura narrativa. O livro é composto por dois parágrafos. O primeiro diz tão somente: “Cheguei em tempo de escravidão” (p. 9). O segundo parágrafo é composto por exatas 291 páginas. O leitor pode pensar que isso torna o texto chato e confuso, pode ser que sinta falta de capítulos ou de respiros durante a leitura. Não é o que acontece – decorre daí, então, um dos grandes triunfos do autor gaúcho. Somos enfeitiçados pela linguagem simples e direta que soa mais como uma conversa repleta de cores, de cheiros e de texturas. Ao final dessas 300 páginas, o leitor certamente fica com saudade do protagonista e não se importaria se o livro fosse mais extenso.
No entanto, por que escrever o romance, nesse extenso bloco narrativo? Medina responde: “Na época em que o Memorial foi escrito, havia por parte dos romancistas “emergentes” (uso o termo por não achar outro melhor) uma intensa busca por inovações formais. Vivíamos uma espécie de crise do romance. O conto reinava soberano. Esgotara-se o modelo do romance de 30, que consagrara nomes como Érico Verissimo, Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e tantos outros superstar. Autores como Loyola (Zero), Ivan Ângelo (A Festa) e mais que todos Osman Lins (Avalovara) propunham novas arquiteturas romanescas. Eu me aventurei pelo romance quando essa tendência era quase um a imposição. LIBERDADE CONDICIONAL, de 1980, segue a tendência de estilhaçamento da narrativa. CARA, COROA, CORAGEM, afinou pelo mesmo diapasão. Do ponto de vista formal, ambos se preocupam com inovações no plano estrutural do romance. Quando comecei a escrever o MEMORIAL, adotei uma proposta de estrutura muito simples (narrativa em primeira pessoa, ordem cronológica, tom memorialístico) e investi todas as energias na linguagem. A única ousadia estrutural que me permiti foi a abolição de parágrafos. Isso explica a forma final do texto”.
Como se sabe, ousadias quase sempre implicam em riscos. Na Literatura não é diferente. Questionado se tal opção foi, de fato, um risco, o autor comenta: “Acho que corri, sim, o risco de tornar a narrativa maçante e perder leitores com isso. Mas é importante lembrar que não fui pioneiro no romance de parágrafo único. “Grande Sertão Veredas”, de Guimarães Rosa, também não tem parágrafos. Sem querer me comparar ao grande mestre, de quem eu era fã de carteirinha na época, confesso que tive em mente a saga de Diadorim e Riobaldo ao cometer o Memorial”.
Além de “Grande Sertão Veredas”, é fácil e lógico associarmos MEMORIAL DE SANTA CRUZ às aventuras e desventuras de Pantagruel, célebre personagem de François Rabelais (1494 – 1553), ou m esmo a “Sargento Getúlio”, de João Ubaldo Ribeiro (1941 – 2014), obras de primeira linha, diga-se. Ocorre que com seu romance, Medina alcança maior profundidade, superando o humor picaresco do primeiro e o acento regional, verificado no segundo.
Ainda curioso e sem pudor de tomar o tempo do grande romancista, perguntei se no ano de 1983 aos dias atuais mudou o perfil do leitor brasileiro e se a arquitetura narrativa do MEMORIAL DE SANTA CRUZ pode provocar estranhamento aos leitores de hoje. Paciente, Medina esclarece: “Não conheço pesquisas (ainda que certamente existam) sobre as mudanças do público leitor brasileiro nas últimas décadas, mas a observação a olho nu sugere que houve, sim, alterações nas preferências dos leitores. O que é natural se pensarmos nas mudanças demográficas e comportamentais que sacudiram a sociedade brasileira nas últimas décadas. Basta comparar o tipo de romance que hoje faz sucesso com os autores que “vendiam bem” no passado. Parece-me que o tipo de literatura que faço ficou confinada a um nicho de mercado (o da velha literatura brasileira) cada vez mais estreito. Para você ter ideia, o me livro que mais vendeu foi o LIBERDADE CONDICIONAL, publicado em 1980. Como digo (de brincadeira mais a sério) calculo ter hoje uns 500 leitores que sabem que existo e continuam acompanhando o meu trabalho. Penso que o parágrafo único do Memorial não causaria estranhamento entre os leitores do nicho de mercado a que me referi acima. Mas fora dele, creio que sim. O livro foi escrito dessa forma pelas razões que expliquei antes. Como se trata de um ser com vida própria, não me sinto autorizado a mexer na estrutura dele. Talvez seja um defeito de nascença, mas já não há o que fazer. O que posso te assegurar é que eu não escreveria hoje outro livro com a mesma arquitetura”.
Jornalista de formação, Sinval Medina mora em São Paulo desde 1971, onde também atuou como professor universitário. Seu romance Tratado da Altura das Estrelas, que retrata as navegações do século XVI e as aventuras do primeiro brasileiro mestiço, venceu o prêmio Passo Fundo de Literatura de 1999 e mereceu reedição pela Editora da PUC/RS em 2015.
Infelizmente MEMORIAL DE SANTA CRUZ está fora de catálogo; porém, é encontrado com facilidade nos sebos. Na Internet, pode-se encomendá-lo a partir de R$ 4,90, preço que contrasta com o valor da obra. O livro aguarda um olhar atento por parte de editores e, talvez, só adquira o justo rótulo de “clássico” quando tiver a chance de ser reeditado.
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Luís Dill (escritor) em 20 de fevereiro de 2016.