MÃE E FILHO NUMA NOITE FRIA DE NATAL
Escritor e professor trata do frio no conto “A Árvore de Natal na Casa de Cristo”, do russo Fiódor Dostoiévski.
Uma criança morre de frio na Rússia do século XIX. O conto “A Árvore de Natal na Casa do Cristo”, de Fiódor Dostoiévski, não está na chamada obra completa do escritor. Todos sabem que melhor fazem os editores de Espanha e hispano-americanos que denominam “obra escogida” (obra escolhida).
O conto dá a impressão de uma história trivial. Na Rússia czarista (onde), uma criança (quem) morre (o que) de frio (como), junto com a mãe (com quem), numa noite de natal qualquer na segunda metade do século XIX (quando). Outras personagens funcionam como figurantes. Umas, da mesma condição dos outros dois morrem; outras, contrastando com seu fausto a miséria de que são vítimas as primeiras.
O conto é narrado na terceira pessoa do singular e o narrador dá a ideia de que sabe tudo a respeito dos eventos, isto é, apresenta-se como terceira pessoa onisciente. Além do mais, deixa entrever também que sabe tudo a respeito do menor abandonado, pois chega a saber até mesmo o que acontece para além de sua morte e da morte de sua mãe.
O narrador que abre o conto não é o mesmo que intercepta o evento no segundo parágrafo. O indicador de mudança da voz não é a troca de cenário. Quem narra e descreve o tempo presente da criança, mais especificamente, os seus últimos momentos de vida, ao remeter o leitor para a cidadezinha anterior, de onde viera o menino, ao tempo que em passant dá um flash das migrações internas e do êxodo rural clássico, acompanhado das desilusões das luzes da cidade, opera a transformação do estilo em passe quase mágico.
O tempo verbal passa do passado para o presente, ou por outra: para falar do presente, o tempo verbal escolhido é o passado; ao trocar de cenário e de tempo e falar do passado, o narrador opta pelo presente, como se pode verificar nas transcrições abaixo, onde a indica abertura do conto e refere a mudança aludida no segundo parágrafo.
Onde, porém, não há luz, nem gente na (s) rua (s), há alimentação para o menino, que também é protegido do frio. “Lá era tão quente; davam-lhe de comer”. “Meu Deus! Se ele ao menos tivesse alguma coisa para comer!... E o frio, ah! Este frio!”.
O narrador resume o contexto: onde há mais gente, o menino está só; onde há mais fartura, o menino passa fome; onde há mais recursos contra a crueldade do inverno, o menino está mais desabrigado diante do frio.
Disse o cidadão Dostoiévski: “Nos ambientes mais mesquinhos encontrei as maiores provas da espiritualidade humana”. Diz-nos o narrador com uma frequência que dá bem a ideia desta sua convicção, quase uma obsessão narrativa: onde deveria haver amor, há ódio, pois o filho mata o próprio pai (“Os Irmãos Karamázov”); onde deveria existir misericórdia para os velhos, os novos os trucidam sem piedade (“Crime e Castigo”): de quem não se pode esperar que venha bondade, o bem emerge de um jogo tese-antítese-síntese, cujo resultado final será um bom ladrão (“O Ladrão Honrado”); o Estado, apresentado para proteger e defender a sociedade civil, engendra um aparelho fatal que haverá de, através de práticas burocráticas totalitárias, reificar o cidadão (“O Crocodilo”).
Esta dialética peculiar encontra na biografia do escritor o paroxismo maior. O cidadão reacionário é um escritor revolucionário; sua obra está cheia de mortes, de patologias, de crueldade, de dor, mas o que lhe cobre por inteiro é o lençol da sátira menipeia que faz do cômico um trágico e da tragédia uma comédia, tudo misturado em porções bem medidas, que somente um ficcionista que sabe inclinar-se por tais ou quais opções estéticas, é capaz de realizar.
Este conto é referencial na obra de Dostoiévski, autor de uma espiritualidade de complexas sutilezas.
Fonte: Correio do Povo/CS/Deonísio da Silva (Escritor e professor. Seus livros mais conhecidos são os romances “Avante, Soldados: Para trás” (Prêmio internacional Casa de las Americas) e “Lotte & Zwig”, já publicados também em outros países, e “De Onde Vêm as Palavras”). Em 27/8/2016,