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Erling Kagge: Silêncio na Era do Ruído
Erling Kagge: Silêncio na Era do Ruído

SILÊNCIO EM GUARULHOS

 

Se for a Lisboa em breve, não se esqueça de levar um livro; imprevistos acontecem e mais vale garantir seu silêncio do que se estressar com os ruídos do aeroporto.

 

Eu estava a caminho do aeroporto de Lisboa quando recebi uma mensagem da TAP avisando do cancelamento do meu voo para o Rio de Janeiro (motivo: problemas técnicos, ou seja, problemas da companhia). Fiquei possessa, como podem imaginar, sobretudo porque meu aniversário era no dia seguinte e eu tinha combinado um almoço com a minha família, depois de meses sem vê-la. No guichê da companhia aérea, a indicação era para que os passageiros pegassem o avião na manhã seguinte. Ora, é verdade que eu me importo cada vez menos com o meu aniversário, mas não a ponto de querer passar o dia inteiro numa apertada cadeira da econômica, ainda por cima sozinha. Quando eu chegasse do outro lado do Atlântico, o dia já teria terminado, e eu estaria um ano mais velha sem nenhuma comemoração. Não fazia sentido.

 

Portanto, voei até São Paulo e aguardei no aeroporto de Guarulhos cinco horas para pegar um voo para o Rio. Aeroporto e inferno, para mim, são mais ou menos o mesmo lugar. Portanto, quando cheguei a São Paulo, estava querendo matar a TAP. Mas como a TAP é uma empresa cada vez mais abstrata, praticamente incomunicável, essa missão estaria fora de possibilidade. Então, fiz como a maioria das pessoas faz hoje em dia: entrei no Facebook para despejar a minha raiva. Nessas horas, eu acho o Facebook – que tem inúmeras desvantagens – uma maravilha, pois nos faz sentir menos sozinhos no mundo. Afinal, em poucos minutos apareceram dezenas de pessoas que também haviam passado por problemas similares aos meus. Foi uma catarse coletiva.

 

Uma hora depois, a internet acabou. Eu ainda não tinha o meu 3G ativo e o aeroporto de Guarulhos oferece apenas uma hora de internet gratuita. Achei que não valia a pena pagar para continuar reclamando, e saí em busca de uma livraria. Eu não tinha nenhum livro comigo, pois a princípio passaria apenas uma noite no avião, dormindo… E livrarias de aeroporto, vocês sabem, não são lá muito diferentes do resto do aeroporto, mas acabamos sempre por encontrar alguma coisa. Um pequeno livro me chamou a atenção pelo título, SILÊNCIO NA ERA DO RUÍDO (Objetiva), ao mesmo tempo em que me desanimou pela menção estampada na capa: Best-seller internacional (sim, eu sou dessas pessoas que resiste a um best-seller internacional e a um filme blockbuster). Hesitei, mas o título e a contracapa saíram vitoriosos. Silêncio era tudo o que eu precisava depois do barulho em que a TAP havia me metido.

 

Erling Kagge, o autor, é um norueguês de 55 anos. Na Wikipédia, para o nosso deleite, é descrito como: explorador, advogado, colecionador de arte, empreendedor, político, modelo da Rolex, autor e editor. Terminei a descrição sem fôlego. Mas quando li o livro, numa cadeira de Guarulhos, ele se apresentava apenas como explorador, editor e pai de três filhas adolescentes que, como qualquer adolescente do mundo de hoje, vivem enfurnadas em telefones, tablets e não suportam muito tempo fora da comunicação. Foi de uma conversa com elas que surgiu a ideia do livro. À mesa de jantar, Kagge queria convencê-las de que o silêncio é um luxo mais valioso do que as bolsas da Marc Jacobs. Sem sucesso, passou as noites seguintes pensando a respeito de três perguntas: “O que é o silêncio? Onde está? Por que hoje o silêncio é mais importante do que em qualquer outra época?” No fim, ele tinha 33 tentativas de respostas e são essas tentativas que compõem o livro.

 

Kagge foi a primeira pessoa a caminhar sozinho no polo Sul e a chegar aos três polos – Norte, Sul e o cume do Everest. Só de imaginar esses lugares, já imaginamos o silêncio, embora o “silêncio” não seja o mesmo que o “nada”. Em outras palavras, há ruídos até no polo Norte, do gelo que quebra, por exemplo. O silêncio absoluto não existe, ao menos não para nós. E, por isso mesmo, trata-se antes de uma forma de estar no mundo momentaneamente. Em realidade, de não estar no mundo. Diz Kagge: “Quando não posso caminhar, escalar ou navegar pelo mundo, aprendi a trancá-lo do lado de fora. (…) enterrado sob a cacofonia de barulhos do trânsito e pensamentos, música e ruído de máquinas, iPhones e removedores de neve, ele estava à minha espera. O silêncio”.

 

Numa troca de e-mails sobre o tema, o grande escritor Jon Fosse diz a Kagge: “De certa maneira é o silêncio que deve falar. Talvez porque o silêncio traga consigo o deslumbramento, mas também porque traz uma certa majestade em si, como um mar ou uma infinita planície nevada. E quem não se deslumbra com essa majestade tem medo. Na verdade, é por isso que muitos têm medo do silêncio (e é por isso que temos música como pano de fundo em tudo, por toda parte).”

 

Já falei sobre o título constante do mundo atual e a necessidade do silêncio quando escrevi sobre PAPE SATÀN ALEPPE, o último livro de Umberto Eco. Eco dizia que em breve o silêncio será o luxo mais caro de todos e as pessoas pagarão muito para passar uns minutos longe do barulho. No fundo, já faz tempo que o silêncio é coisa de rico. Como lembra Kagge, “pessoas com salários baixos trabalham via de regra em locais mais barulhentos do que as pessoas com salários altos, e as casas e apartamentos onde eles moram têm pior isolamento acústico. Os bem de vida moram em lugares com menos barulho e ar mais puro, e seus carros também fazem menos barulho, assim como suas máquias de lavar roupa”.

  

Nos dias de hoje, tornou-se cada vez mais difícil fechar o mundo do lado de fora e experimentar o silêncio. As filhas de Kagge quase nunca param. Estão sempre acessíveis e praticamente o tempo todo ocupadas. As filhas dele, mas também (quase) todos os outros filhos nos mais diversos lugares do planeta. Abordei recentemente a literatura como resistência pelo seu caráter de inutilidade – num mundo governado pela lógica da utilidade e do lucro, a inutilidade(a experiência sem um fim pragmático, ou pura e simplesmente a curiosidade) tem um valor revolucionário. Ora, num mundo inundado pelo barulho, o silêncio também. E eu não conheço nada tão potente quanto a literatura (é verdade que nunca estive em nenhum dos polos, nem no Norte, nem no Sul, nem no monte Everest) para nos permitir trancar o mundo do lado de fora.

 

Pouco depois de ter sentado numa cadeira em Guarulhos, lendo o livro de Erling Kagge, eu já dominava a fabulosa magia de não ouvir os chamados para os voos, as conversas alheias nem os apitos dos smartphones. Nem Harry Potter foi tão longe em seus truques. Cheguei até a esquecer (por pouco tempo, é verdade, pois o livro é curto) que a TAP havia cancelado o meu voo… Quando um livro é bom, a gente só ouve as palavras que nele estão escritas. E os silêncios entre elas.

 

Erling Kagge, que é também editor, transita, em SILÊNCIO NA ERA DO RUÍDO, entre as explorações, a poesia e a filosofia. Do seu lado aventureiro, traz, por exemplo, a experiência vivida no seu turno solitário como vigia num passeio de barco pela costa do Chile em 1986. De repente, ele ouviu uma respiração lenta e profunda vinda do oeste. Era uma baleia, de cerca de vinte metros, a apenas alguns metros de distância. Kagger se deslumbrou ao escutar o “profundo barulho que vinha do orifício respiratório que ela tinha no doso”.O som da respiração de uma baleia é silêncio puro. No romance BARBA ENSOPADA DE SANGUE, Daniel Galera também descreve, numa das passagens mais bonitas do livro, o encontro do protagonista com a respiração de uma baleia. Eu não sou nada exploradora mas certa vez ouvi a respiração de um cachalote num passeio de barco na ilha da Madeira, e posso garantir que, como afirma Kagge, “o mudo não foi mais o mesmo depois disso”.

 

Da literatura, o autor nos traz, por exemplo, dois haicais que nos levam diretamente para o silêncio. O primeiro é de Basho:

 

Uma velha lagoa -

Um sapo que dá um salto:

O chapinhar da água”

 

Três versos e eu já estava bem longe de Guarulhos, numa casinha no campo, ouvindo o silêncio da natureza. O segundo foi escrito por um poeta anônimo das ilhas Matsushima e diz o seguinte: “Ah, Matsushima”. E lá estava eu nessas ilhas, que mal sei onde ficam, vendo, através do silêncio do poeta, a sua beleza.

  

Mas o silêncio parece cada dia mais distante do nosso mundo. Não paramos de inventar aplicativos de barulho coletivo. Eu mesmo entrei no Facebook naquela manhã para gritar em comunidade. E essa sensação pode até ser momentaneamente boa, mas o mundo continua exatamente o mesmo depois dela. Igualmente ruidoso, igualmente claustrofóbico. Ao desligar meu smartphone, depois do desabafo contra a TAP, o mundo era exatamente o mesmo, e eu estava até mais enfurecida, por perceber o que as companhias aéreas estão fazendo com seus passageiros. Ao fechar o livro, o mundo até podia ser o mesmo, mas já me parecia um pouco melhor. Ao menos, o meu humor era outro, e eu entrava no avião para o Rio mais animada. Portanto, fica aqui a dica: se for para Lisboa em breve, não se esqueça de levar um livro. Imprevistos acontecem com frequência e mais vale garantir o seu silêncio do que se estressar com os ruídos do aeroporto.

 

Fonte: Revista Valor/Tatiana Salem Levy (doutora em Letras e escritora) em 02/03/2018.