HISTÓRIA CALADA
O romancista sul-africano, um historiador americano e um filósofo alemão lançam luz sobre uma das forças mais sombrias da história das ideias: a censura.
Durante o apartheid, J.M. Coetzee não teve problemas com a censura. O regime racista da África do Sul, que escrutinava todos os livros de autores do país, aprovou, sem fazer cortes sem impor mudanças, três romances do escritor que em 2003 seria agraciado com o Nobel de Literatura: NO CORAÇÃO DO PAÍS, de 1977, À ESPERA DOS BÁRBAROS (1980) e VIDA E ÉPOCA DE MICHAEL K. (1983). Depois que o apartheid chegou ao fim, em 1994, um pesquisador que teve acesso aos arquivos da censura sul-africana contatou o autor. Coetzee teria curiosidade de ler os relatórios escritos sobre seus livros? Sim, teria. Veio a surpresa: os censores eram figuras respeitadas do meio literário, e Coetzee cruzou com vários deles em eventos sociais e nos corredores das universidades onde lecionou. Se antes Coetzee imaginava o “censor profissional” como “um burocrata menor e insignificante” (como foram, aliás, os censores no Brasil da ditadura militar), esse clichê era corrigido pelo fato desconfortável de que os fiscais secretos do governo eram “cidadãos da república das letras”. Não se trata de uma singularidade do apartheid. Na França pré-revolucionária do século XVIII, a Direction de la Librairie, departamento encarregado de fiscalizar o comércio de livros, empregava teólogos da Sorbonne, escritores e beletristas para julgar manuscritos que aguardavam o “privilégio”, concedido pela coro, para ser impressos. Braço de controle estatal sobre o mundo das ideias, a censura é bruta, mas nem sempre burra. A metáfora convencional da tesoura, que representa a censura na charge francesa reproduzida abaixo, talvez pudesse ser substituída pela do cinzel. O censor não se limita a cortar conteúdos indesejáveis, mas ambiciona tornear o pensamento e modelar a cultura de acordo com a imagem que melhor aprouver ao poder de turno.
A experiência pessoal de Coetzee com o controle do apartheid foi relatada em palestras que o autor deu no Brasil, em 2013; essa conferência, com o título SOBRE A CENSURA, foi lançada neste ano pela editora da Universidade Federal de Santa Maria em um livrinho compacto (e gratuito: no site da editora, cobra-se apenas a despesa de postagem), com um posfácio esclarecedor dos críticos Lawrence Flores Pereira e Kathrin Hozelmayr Rosenfield. A prática da censura na França sob os reinados de Luís XV e Luís XVI é examinada pelo historiador Robert Darnton, da Universidade Harvard, no excelente CENSORES EM AÇÃO – que também traz capítulos dedicados à censura na Índia sob domínio colonial inglês e na Alemanha Oriental comunista. Muito de passagem, na conclusão de seu estudo, Darnton – uma autoridade na história do livro, e especialmente do agitado universo editorial da França setecentista – cita uma obra anterior de Coetzee sobre a censura, GIVING OFFENSE (algo como “Praticando Ofensa”, sem edição no Brasil). Mas, para além dessa menção rápida, parece haver um tácito diálogo entre o estudo de fôlego do acadêmico americano e a conferência breve do romancista sul-africano. Quase fica a sugestão de que a África do Sul sob o apartheid poderia ser um quarto caso de estudo para Darnton.
Há constantes nos cenários históricos tão diversos examinados por Darnton. A opressão estatal caía, sim, com força sobre os que tentavam burlar seu controle. Na França do Iluminismo, livreiros que vendiam panfletos e obras proibidas passavam temporadas na Bastilha. No século XIX e no início do XX, escritores indianos que recorriam à mitologia hindu para criar alegorias sobre a independência nacional eram aprisionados pelas autoridades inglesas. Na Alemanha Oriental, o escritor Walter Janka, marxista convicto, passou cinco anos em uma solitária só por mostrar simpatia pelo crítico húngaro Georg Lukács em 1956 (Janka nem sequer sabia que, em Budapeste, Lukács fizera parte do breve governo antissoviético de Imre Nagy).
Ao lado da franca repressão, porém, também vigoravam negociações entre autores e censores, soluções de compromisso, subterfúgios e manobras. Voltaire era um exímio manipulador das instituições de controle, e seus pares recorriam a editoras estrangeiras para imprimir obras controversas (caso da ENCICLOPÉDIA, verdadeiro best-seller clandestino, impresso sobretudo na Suíça). Não, não se deve concluir daí que a censura não é perniciosa, e que a liberdade de expressão – do ponto de vista histórico amplo, uma invenção ainda recente das modernas democracias liberais – é um valor relativizável. É antes o caso de admirar o poder imbatível da inteligência livre mesmo quando submetida à coerção política e social.
Um terceiro livro, também por um feliz acaso publicado recentemente no Brasil, vem se acrescentar à reflexão sobre a censura: PERSEGUIÇÃO E A ARTE DE ESCREVER, coletânea de ensaios do filósofo alemão Leo Strauss (1899 – 1973). Darnton cita essa obra, mas só para afirmar que Strauss recusaria a abordagem “historicista” desenvolvida em CENSORES EM AÇÃO. Ocorre que, enquanto Darnton observa sobretudo o mundo social onde operavam os censores, Strauss está interessado no resultado final das difíceis acomodações entre a censura e os censurados. O ensaio-título de PERSEGUIÇÃO E A ARTE DE ESCREVER pede que os bons leitores modernos afinem uma sensibilidade especial para ler certas obras consagradas. Os grandes autores que viveram sob perseguição – fosse nas formas mais abertas e cruéis (o exemplo de Strauss é a Inquisição Espanhola), fosse na modalidade mais branda mas nem por isso negligenciável da ameaça de ostracismo social – teriam desenvolvido, em diferentes tempos históricos, a arte de escrever nas entrelinhas. O difícil ofício do leitor filosoficamente instruído, portanto, seria o de apreender, nos clássicos do passado, um sentido esotérico, que não se apresenta de imediato na superfície do texto. O censor corta o que vê; o bom leitor recupera o que ele não viu.
Fonte: Veja/Jerônimo Teixeira em 06/07/2016.