UM HAMLET NECESSÁRIO
Nova tradução da peça oferece ferramentas para que o leitor possa decifrar detalhes dos diálogos e referências cifradas.
Assim como não é incomum um sujeito nunca ter lido Sigmund Freud para, em algum momento da vida, discursar com autoridade sobre Complexo de Édipo, é bastante provável que a maioria daqueles que nunca leram um verso que seja de William Shakespeare saibam muito bem quem foi Hamlet, o príncipe da Dinamarca. O personagem, a peça, as passagens mais famosas e o conflito básico do livro fazem parte da cultura de nosso tempo. Recebemos ao longo da vida tantas referências sobre ele que acabamos por acreditar que o livro já foi mesmo lido, muito tempo atrás, só não sabemos precisamente quando.
O português conta com pelo menos uma dezena de traduções do HAMLET, algumas realmente boas, mas com a publicação recente da tradução feita pelo poeta e professor Lawrence Flores Pereira, pelo selo Penguin Classics Companhia das Letras, ganhamos todos um novo padrão, uma nova e seminal referência.
Trata-se de uma tradução que combina várias ambições e compromissos, que certamente lhe cobraram muita habilidade e testaram sua já reconhecida experiência: Lawrence mantém o mesmo número de versos do original (utilizando-se do que ele chama de alexandrinos atonais), evitando com esse procedimento transbordamentos; mantém o coloquialismo nos momentos que o original o mantém, alcançando que cada personagem tenha em português a sua própria voz (a voz que Shakespeare deu a elas); faz um uso rico do léxico português; explora muito bem o contraste entre prosa e verso sempre presente nas obras de Shakespeare; respeita o ritmo do original; e produziu um texto para ser encenado de fato, um texto que pode ser lido em voz alta ou declamado com naturalidade (cabe dizer que uma primeira versão dessa tradução já foi testada com sucesso em uma montagem sob a direção de Luciano Alabarse, em Porto Alegre, há cinco anos).
Gostei muito da tradução de Lawrence, de ler em voz alta a peça, de reencontrar aqueles bizarros personagens que parecem sempre querer me convencer da necessidade de seus atos terríveis.
O volume inclui uma série de mimos (típicos desta coleção Penguin Classics Companhia das Letras): (1) uma introdução, assinada por Lawrence, que dá conta de aspectos históricos e teatrais das obras de Shakespeare; (2) um famoso ensaio do poeta e dramaturgo Thomas S. Eliot (Nobel de 1948), em que ele alerta para o que ele chama de encantamento que a peça provoca nos leitores (principalmente naqueles cujas mentes são de natureza criativa, mas por falta de poder criativo e disciplina, dedicam-se à crítica), encantamento que os faz esquecer dos problemas técnicos que a peça tem (não os problemas que o personagem Hamlet tem); (3) duas notas breves que explicitam as fontes e o compromisso tradutório utilizado; (4) as referências bibliográficas fundamentais; e, por fim, aquilo que acredito ser o mais generoso dos presentes, (5) extensas notas de tradução, que ocupam aproximadamente um terço do volume, onde ora se argumenta sobre as soluções adotadas na tradução de passagens específicas, ora se fala da conveniência ou não de um determinado procedimento cênico, mas que também oferece explicações sobre aquilo que é cifrado ou enigmático demais no original, como certos antropônimos, topônimos, passagens que fazem alusão a mitologia, história e sociologia. Essas últimas notas fazem a festa de um leitor curioso.
Lawrence nos ajuda a entender algo mais da engenharia da peça, oferece ferramentas para que possamos decifrar detalhes dos diálogos e das referências cifradas. Em algum momento esforcei-me em contrastar essa experiência de leitura com a memória das vezes em que vi Hamlet encenado. Claro, a experiência de ver a peça bem encenada, num palco, ou mesmo com algum prejuízo numa produção para cinema ou televisão, é sempre poderosa. No caso dos dramas clássicos, a experiência visual parece mais vívida que a leitura silenciosa, parece indicar que nos aproximamos melhor daquilo que Wagner chamava de arte total e é por isso que dificilmente esquecemos aquelas horas de encantamento numa sala escura.
Entretanto, como por mágica (mas sabemos que é por arte e engenho), a leitura em voz alta da tradução de Lawrence alcança um efeito comparável ao de uma encenação e, mesmo solitários, em casa, somos transportados para Elsinor, emergimos naquele mundo em conflito, de indecisão e reflexão, de conflito e morte, de angústias e até de alegrias. Ler essa tradução do Hamlet é sim uma experiência bastante prazerosa, que deixa o leitor “drowning in honey, stingless”.
Fonte: ZeroHora/Aguinaldo Medici Severino (Doutor em Física, professor da UFSM. Organiza o Bloomsday Santa Maria) em 15/11/2015