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Angústia, Anton Tchekhov: O Frio que invade a Alma
Angústia, Anton Tchekhov: O Frio que invade a Alma

ANGÚSTIA:  O FRIO QUE INVADE A ALMA

 

Fiel ao aforismo “a brevidade é irmã do talento”, Anton Tchekhov renovou a literatura do século XIX, reduzindo as dimensões do conto e ampliando sua capacidade de dar conta do espaço infinito que constitui o humano.  Essa competência para abreviar a narrativa sem perda de dramaticidade resultou na criação de novo paradigma estético que consagrou o conto moderno na literatura ocidental.

 

Para alcançar o efeito de síntese, o escritor recorta pequenos episódios da vida, fatos humanos cotidianos, corriqueiros relacionados à sociedade russa em suas desigualdades.  Com esse material, escreve como quem respira, tendo por objeto narrativo o homem em sua complexidade.  Tchekhov narra o fluir de sentimentos que asseguram a cumplicidade do leitor pela sinceridade e realidade que deles advém.

 

Sobre todos exemplar é o conto “Angústia”: ao narrar o drama do cocheiro que tenta, em vão, comunicar-se para dividir, com outras pessoas, a dor causada pela perda recente do filho, Tchekhov alcança um alto grau de representação dramática.  Avaro em palavras, ele faz coincidir o desamparo do protagonista e o frio do inverno russo, com sua neve úmida, em grandes flocos, a cobrir os telhados das casas, o lombo dos cavalos e os ombros das pessoas.  Explorando a brevidade do enredo, o contista condensa efeitos, conjugando os dados internos das personagens com o clima gelado, que ultrapassa as dimensões do ambiente e do mero cenário para tornar-se atmosfera.  O frio, com sua capacidade de constrição, recolhimento e imobilidade, corresponde à indiferença, insensibilidade e falta de misericórdia dos homens de todas as classes sociais ante a dor mais profunda de um homem.  Tchekhov deixa ler essa relação desde o início, quando apresenta o cocheiro imóvel, na boleia do carro, “encolhido o mais que pode se encolher um corpo vivo”.  A dor de um pai ante a perda recente do filho e seu único arrimo produz em Iona a necessidade de falar para manter-se vivo.  É evidente que a relação entre frio e morte  logo se estabelece.

 

O conto “Angústia” é curto e seu episódio muito simples, eis que Tchekhov notabiliza-se pela economia narrativa.  Em uma cidade da Rússia, em pleno inverno, congelados pelo frio, Iona e seu cavalo, param diante de um estabelecimento onde aguardam clientes para conduzi-los no trenó. Iona tem as pestanas cobertas de neve e, enquanto transporta seus passageiros, “a neve cai em camadas de seus ombros e do dorso do cavalo”.  Ao cruzar por ele na confusão das ruas barulhentas, outro cocheiro “sacode a neve da manga”.  Adiante, em uma segunda corrida, Iona tenta novamente ser ouvido, enquanto “a neve molhada torna a pintá-lo de branco juntamente com o rocim”.  Ele conduz três rapazes bêbados que quase nada lhe pagam pelo serviço; aceita-os  porque precisa, mais do que tudo, ter contato com o calor humano para dirimir a intensidade de sua dor.  na ausência de respostas às tentativas de comunicação, o frio da alma manifesta-se em angústia.  E a morte, que errara de porta ao levar-lhe o ilho, permanece em todo o texto, na evocação à terra ria e aos túmulos que restam à personagem.  Tchekhov evita qualquer palavra supérflua e concentra no cocheiro “uma angústia imensa, que não conhece fronteiras”.

 

O conto desenvolve-se desse modo até o breve final, quando Iona desiste das pessoas e recolhe-se ao seu alojamento, onde busca o calor de um fogão grande e sujo.  Mas esse calor não lhe basta.  Em meio aos trabalhadores rudes e cansados, ele permanece só, com o medo insuportável que lhe causam suas lembranças.  E o epílogo do conto consiste na conversa com seu cavalo, enquanto este mastiga o feno e sopra a mão do dono com seu bafo quente.

 

Quando apenas o cavalo faminto e sujeitado ao frio e à miséria do entorno, ouve a queixa dolorida de Iona, o conto termina e a vida continua.  Esse fluxo de continuidade é comum a muitos contos de Tchekhov.  Em “Angústia”, conforme a objetividade realista da época, o frio da morte equipara-se à ausência de afetos e espreita a todos os homens, eis que integra o fluxo natural da vida.  A escassez de palavras e falas e descrições, novidade para a época, encontra na temática do frio uma representação ideal.  No frio, os corpos se encolhem, os sentimentos se aninham e se estreitam, uma força centrífuga recolhe, condensa e congela personagens num vórtice de espiral que reproduz, na imaginação dos leitores, a sensação de perdimento, pesadelar e onírica.  Tchekhov busca a objetividade para transmitir, na economia do texto, a percepção do frio da alma quando falha a humanidade em volta.

 

Fonte:  Correio do Povo/CS/Léa Masina (Professora da UFRGS) em 27/8/2016.