A CANÇÃO É NOBEL
Totem da música, da poesia e da contracultura, Bob Dylan recebeu ontem o prêmio mais importante da literatura.
A harmonia entre letra e música nunca foi questão de sobrevivência na canção popular. Se a melodia for de assoviar, dançar e bater o pé, se o refrão grudar na cabeça, o ouvinte costuma revelar a poesia menos inspirada. Mas existem artistas, como Bob Dylan, 75 anos, dos quais não é possível dissociar a música da narrativa de grande potência. Ao anunciar ontem o cantor e compositor como o vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 2016, a Academia Sueca justificou: “Por 54 anos, Dylan tem se reinventado. O álbum BLONDE ON BLONDE é um extraordinário exemplo de como usar rimas e refrões e da sua brilhante forma de pensar”. O comunicado destacou ainda, prevendo reações de surpresa com a escolha: “Ainda lemos (os poetas gregos) Homero e Safo e gostamos. Eles escreveram textos poéticos para serem cantados. Com Dylan é a mesma coisa”.
Dylan soma à conquista do Nobel um feito extraordinário em matéria de distinções artísticas: literatura, cinema e música. Na sua estante há um Oscar e um Globo de Ouro (pela canção THINGS HAVE CHANGED), um Pulitzer, de 2008, e um punhado de Grammys amealhados ao longo da carreira iniciada em 1959, quando o garoto de Duluth começou a mostrar no 10 O’clock Scholar, bar de Minneapolis, composições de blues e folk inspiradas em seu grande ídolo, Woody Guthrie. Robert Allen Zimmerman começava ali a se tornar o bardo de uma geração Bob Dylan.
Em 1961, de muda para Nova York, Dylan encontrou o cenário para sedimentar sua carreira. Assinou um contrato com a Columbia Records para gravar seu primeiro álbum, lançado no ano seguinte. Foi com o segundo disco que o mito tomou forma. THE FREEWHEELIN’ BOB DYLAN, apresentado em maio de 1963, trazia como faixa de abertura BLOWIN’IN THE WIND, que faria de Dylan o porta-voz do segmento artístico politicamente engajado e militante de temas candentes, como a luta pelos direitos civis dos negros e a Guerra do Vietnã: “Sim e quantas vezes deve um homem olhar para cima / Antes que possa ver o céu? / Sim e quantos ouvidos um homem deve ter / Antes que possa ouvir as pessoas chorarem? / Sim e quantas mortes causará até saber / Que muitas pessoas têm morrido / A resposta, meu amigo, está soprando ao vento / A resposta está soprando ao vento”.
Dylan tronava-se um totem da música, da poesia e da contracultura. Foi, em popularidade e reverência, o espelho sério e sóbrio da beatlemania. Promoveu guinadas espetaculares na carreira e na vida pessoal. Em 1966, rompeu com parte dos fãs e arrebanhou outros ao trocar o violão pela guitarra elétrica. Nos anos 1970 o bardo judeu converteu-se ao cristianismo, tornou-se estudioso da Bíblia e incorporou o louvor gospel a sus canções – transição simbolizada no disco SLOW TRAIN COMING (1979).
Com 37 discos de estúdio, tem apenas dois livros: CRÔNICAS (2004), primeiro volume da anunciada trilogia de memórias, e TARÂNTULA, exercício experimental de poesia lançado no circuito underground em 1966 e publicado em 1971 – no Brasil, em 1986. Poderia se incluir nessa bibliografia ainda as três publicações que lançou desde a994 com desenhos e pinturas expostos em importantes galerias do mundo. Hoje, Dylan sobe novamente ao palco do festival Desert Trip na Califórnia, na companhia dos Rolling Stones – no fim de semana, apresentam-se também Paul McCartney com Neil Young e Roger Waters com The Who, gigantes que também seguem voando para onde sopra o vento.
Fonte: ZeroHora/Marcelo Perrone em 14/10/2016.
Assista agora: LIKE A ROLLING STONE em: zhora.co/likearolling
http://video.bobdylan.com/desktop.html
Assista agora: BLOWIN’IN THE WIND em: zhora.co/blowing
https://www.youtube.com/watch?v=vWwgrjjIMXA
Assista agora: SUBTERRANEAN HOMESICK BLUES em: zhora.co/dylansub
https://www.youtube.com/watch?v=MGxjIBEZvx0
FURACÃO DYLAN
Anúncio do Nobel de Literatura para Bob Dylan provocou reações em críticos e autores.
Foi com surpresa, mas também com alegria, que a comunidade cultural recebeu a notícia de que Bob Dylan é o Nobel de Literatura.
- É verdade isso? Que maravilha! Sensacional! – comemorou o professor Luís Augusto Fischer, ao saber da notícia por telefone, em entrevista a Zero Hora.
Fischer, que há 25 anos ministra uma disciplina sobre canção popular no Instituto de Letras da UFRGS, aponta que a escolha de Dylan é também uma forma da Academia Sueca, responsável pelo prêmio, reconhecer o status de expressão poética à canção popular. A entidade já havia feito algo comparável no ano anterior, quando escolheu uma jornalista, a bielorrussa Svetlana Alexievich, com o premiada, demonstrando que uma obra jornalística como VOZES DE TCHERNÓBIL, lançada em 1997, tem também valor literário.
- Simbolicamente, o Caetano Veloso, o Gilberto Gil e o Paul McCartney estão ganhando um Nobel ao mesmo tempo. É a geração dos caras nascidos no começo dos anos 1940 que fizeram, nos anos 1960, a canção ganhar a altura que tem agora. Essa não é a primeira geração de compositores letrados. Tivemos antes Noel Rosa, Ary Barroso e muitos outros. Mas nada se compara com o que aconteceu com essa geração do Dylan – afirma Fischer.
Um dos músicos gaúchos com influência mais clara do autor de Like a Rolling Stone, Vitor Ramil concorda com Fischer:
- A gente sempre pensa em um Nobel como alguém conhecido por escrever livros, mas, se considerarmos tudo que o Dylan escreveu, a maneira como suas letras influenciaram outros compositores, escritores e poetas, nos damos conta de que escrever bem é escrever bem, não importa a forma.
Vitor já gravou três versões de Dylan: Joquim (de Joey), Um dia você vai servir a alguém (Gotta serve somebody) e Só você manda em mim (You’re a big girl now). Em seu próximo disco, que deve sair em 2017, o compositor pelotense também deve regravar Sara, canção registrada por Dylan em 1976.
Internacionalmente, a escolha da Academia Sueca também gerou reações parecidas. Pelo Twitter, o escritor Salman Rushdie parabenizou a escolha: “De Orfeu a Faiz, música e poesia sempre foram estreitamente ligadas. Dylan é o herdeiro brilhante da tradição dos bardos. Grande escolha”. No entanto, a seleção de um músico para a láurea também causou estranhamento em alguns escritores, como Irvine Welsh. O autor de Traninspotting escreveu que é “um fã de Dylan”, mas que o Nobel é um prêmio “arrancado de próstatas rançosas de hippies senis”. “Se você é um fã de música, procure por esse termo no dicionário. Então procure literatura. Depois compare”, completou.
ENTREVISTA EDUARDO “PENINHA” BUENO / Jornalista e escritor
Conhecido como um dos maiores fãs de Bob Dylan no Brasil, o jornalista e escritor Eduardo Bueno, o Peninha, conversou com ZH horas depois do seu ídolo ganhar o Nobel. Com a propriedade de quem conhece como poucos o trabalho do bardo americano, Peninha arriscou palpites sobre como o prêmio deverá ser recebido pelo compositor.
Como foi receber a notícia do Nobel para Bob Dylan?
Meu telefone não para de tocar. Meu consolo é que, como o cara é eterno mas vai morrer um dia, não terei que passar por isso na eventualidade de ele vir a nos faltar (risos). É normal, né, pois tu sabe que eu sou ghost dele, só falta ser o writer (risos). O melhor texto que escrevi sobre Bob Dylan foi quando ele fez 60 anos, em 2001. Escrevi me perguntando o que ainda faltava para o Bob Dylan fazer. A única coisa que faltava era morrer. Mas aí já me dei conta de quem nem isso faltava, porque ele já morreu várias vezes. Morreu como folk singer, renasceu como roqueiro, morreu em um acidente de moto, renasceu de novo... Se alguém dizia que ele estava morto, depois da trilogia Love and Theft (2001), Modern times (2006) e Tempest (2012), já se deu conta que está bem vivo. E não se pode esquecer que ele toca neste final de semana pela segunda vez na Desert Trip, onde foi considerado o melhor do primeiro final de semana.
Como será que Bob Dylan terá reagido à notícia?
Vou te dizer em primeira mão o que vai acontecer. Ele ganhou esse Nobel e, no dia seguinte, abrirá mais uma noitada do maior festival de rock do século 21 – pelo menos o maior até agora. Será a primeira apresentação como Nobel. Ele vai subir ao palco e negar o prêmio. Vai dizer: “Esse prêmio tem que ser para o Henry Miller, o Lawrence Durrell, o Allen Ginsberg, o Jorge Luiz Borges... Então enfiem no c* essa merda! Sou apenas um rapaz norte-americano com muito dinheiro no banco, com amigos importantes e vindo do interior”.
Você acha que Dylan ficará indiferente ao Nobel?
Ele tem um comportamento autista altivo. Consegue se desvincular dessas chancelas. Mas essa é muito pesada. É de vergar os ombros, né. Quem ganhou Nobel nos EUA? Eugene O’Neill, T. S. Eliot, Hemingway, Faulkner, Steinbeck... E esses são apenas os que eu lembro! Daí tu é o guri que vem lá do interior e entra nessa lista. Ele é reverente a seus heróis, visita o lugar onde cada um deles nasceu. Muitos desses heróis são músicos, mas há também escritores. A relação dele com a literatura é venerada. Então, de repente, tu pega um cara desses e coloca nessa estirpe. Não tem como ele não ficar incomodado. Ele sabe que é um gigante, mas o colocar no rol dos maiores nomes da literatura... É pesado.
SOBRE OS TRÊS SHOWS EM PORTO ALEGRE
Bob Dylan se apresentou em três ocasiões na Capital: em 1991, no Gigantinho; em 1998, no Opinião; e em 2012, no Pepsi On Stage. Nos três shows, interagiu pouco com o público. Apresentou arranjos diferentes de suas músicas, mas esbanjou domínio de palco.
Em 1991, reportagem de Zero Hora, conta que Dylan “levantou e enlouqueceu a massa, que cantou junto e fez tremer o Gigantinho”. “Foi um show limpo em que não faltou nada”, descreveu o texto do Segundo Caderno.
“Houve estranheza entre fãs desavisados pelo fato de que Dylan não manteve os arranjos originais dos seus clássicos hinos de protesto. Mas a versão sempre renovada de sua obra é uma faceta da disposição libertária do papa do folk rock. O estilo discursivo que predominou em alguns momentos não frustrou a expectativa da seduzida plateia. Dylan, poeta, muitas vezes eleva a palavra sobre a música. Ou não seria Dylan”, diz o texto publicado em 15 de agosto de 1991, dia seguinte ao show.
Em 7 de abril de 1998, um Opinião lotado viu um show de Dylan tido como antológico: “O velho mestre do rock, do folk e do blues solou à moda guitar hero, saltitou feito um garoto, se curvou para as câmeras fotográficas – ainda que fosse proibido tirar fotos do show – e até sorriu, de cantinho, poraquê Robert Allen Zimmerman mostrando os dentes em pleno show, aí já é demais”, descreve Marcelo Ferla do Segundo Caderno.
Em seu segundo TIME OUT OF MIND, lançado em 1997. Logo, boa parte de seu repertório foi dedicado ao álbum. Já em 2012, no Pepsi On Stage, Dylan !mostrou uma faceta descontraída e, na medida do possível, empolgada”, conforme reportagem publicada em ZH: “Dylan repetiu a faixa de abertura da turnê , Leopard-skin pill-box hat, e, na sequência, emendou uma seleção de clássicos no tom nostálgico dos primórdios do rock’n’roll,. Como é comum nos shows de Dylan, ele canta músicas com arranjos diferentes, desafiando os fâs a identificarem a faixa. (...) Um público formado por diferentes gerações acompanhou emocionado o repertório que passou por Simple twist off ate, o rockabilly Summer days, com direito a Dylan empolgado tocando o teclado”, sublinha o texto de Gustavo Brigatti publicado em 25 de abril de 2012.
Como nas passagens anteriores, Dylan trocou poucas palavras com o público. Na única vez em que falou, soltou um “Thank you, guys” e apresentou sua banda. O show foi encerrado de maneira catártica, com Blowin’in the wind. Aos gritos de “Dylan, Dylan, Dylan”, a plateia ganhou o esperado clássico que perpassa gerações no bis, em uma versão com acompanhamento de violino, levando muitos às lágrimas.
“Quantas estradas um homem precisa andar. Até ser chamado de homem? A resposta está soprando no vento” – De “BLOWIN’IN THE WIND” (1963)
“Então ficarei em pé sobre o oceano até afundar. Mas conhecerei bem minha canção antes de cantá-la. E é uma forte, é uma forte, é uma forte, é uma forte. E é uma forte chuva que vai cair” – De “A HARD RAIN’S A-GONNA FALL” (1963)
“Ninguém sente dor alguma. Hoje à noite enquanto eu ficar debaixo da chuva. Todo mundo sabe. Que ela ganhou roupas novas. Mas ultimamente eu vejo suas fitas e seus laços. Caírem dos seus cabelos encaracolados. Ela te prende assim como uma mulher, sim, ela prende” – De “JUST LIKE A WOMAN” (1996)
“Você antigamente era tão entretida Com o Napoleão de trapos e a linguagem que ele usava. Vá para ele agora, ele te chama, você não pode recusar. Quando você não tem nada, você não tem nada a perder Você está invisível agora, não tem mais segredos a ocultar Como se sente? Como se sente? Por estar por sua conta. Sem direção para casa. Como uma completa estranha? Como uma pedra que rola?” – De “LIKE A ROLLING STONE” (1965).
MÚSICAS DE BOB DYLAN
Dylan escreveu clássicos da cultura popular, dando forma musical a letras poéticas – e, às vezes, políticas. Veja alguns destaques de sua produção.
<> LIKE A ROLLING STONE – Integra o disco Highway 61 revisited (1965). Foi considerada a música mais importante de todos os tempos pelas revistas Rolling Stone e Mojo. Seu manuscrito alcançou a cifra de US$ 2 milhões em leilão.
<> BLOWIN’IN THE WIND – Levada apenas a gaita e violão, a faixa de abertura de The freewheelin’Bob Dylan (1963) transformou-se em uma das mais emblemáticas músicas de protesto da história.
<> SUBTERRANEAN HOMESICK BLUES – Do disco Bringing it all back home (1965), a canção é um tributo aos beatniks. Seu vídeo (que traz o poeta Allen Ginsberg ao fundo) tornou-se referência.
<> HURRICANE – Espécie de reportagem em formato de música. Narra a prisão do pugilista negro Rubin Carter, acusado de crime que não cometeu.
<> VISIONS OF JOHANNA – Faixa de Blonde on blonde (1966). A letra é uma minuciosa descrição de paisagens internas e divagações mundanas, e condução, hipnótica.
<> TANGLED UP IN BLUE – compõe um dos discos mais sofridos de Dylan, Blood on the tracks (1975). Apesar do anonimato instrumental, narra um relacionamento conturbado e fadado ao fracasso.
<> THE TIMES THEY ARE A-CHANGIN – A faixa-título do disco de 1964 é uma crítica ácida e direta ao establishment – não à toa, também uma das musicas de Dylan que mais receberam versões ao longo do tempo.
FILMES SOBRE (E COM) BOB DYLAN
Artista múltiplo, o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura 2016 já foi tema de filmes e, também, participou de algumas produções. Confira.
<> DON’T LOOK BACK (1967) – O clássico documentário de D.A. Pennebaker registra a turnê inglesa de Dylan em 1965.
<> EAT THE DOCUMENT (1972) - Uma câmera na mão, um monte de celebridades na tela (Dylan, lennon, Johnny Cash) e o resultado é um documentário caótico, dirigido por Dylan.
<> PAT GARRETT & BILLY THE KID (1973) – No faroeste de Sam Peckinpah, Dylan atuou e compôs a trilha sonora – de onde saiu Knockin’on heaven’s door.
<> RENALDO AND CLARA (1978) – Dylan escreveu o roteiro (com Sam Shepard), dirigiu e fez o papel principal neste filme que mistura ficção, shows e documentário.
<> A MÁSCARA DO ANONIMATO (2003) – Aqui, Dylan vive cantor decadente que volta ao palco. Ele também escreveu o roteiro.
<> NO DIRECTION HOME (2005) – Documentário biográfico de Martin Scorsese (que já havia filmado Dylan no palco em O Último Concerto de Rock, sobre o grupo The band).
<> Não estou lá (2007) – Para dar conta das múltiplas faces de Dylan, o diretor Todd Haynes apresenta nesta inventiva cinebiografia o artista encarnado por seis atores.
Conheça os livros de Bob Dylan em: zhora.co/dylanlivros
Oscar, Grammy e Pulitzer... Confira os prêmios de Dylan em: zhora.co/dylanpremios
Fonte: ZeroHora/Alexandre Lucchese em 14/10/2016.